sábado, 6 de dezembro de 2014

O Ministério Público no Contencioso Administrativo Português: o antes e o depois da Reforma do CPTA.

O papel do Ministério Público no nosso Contencioso Administrativo sempre foi um pouco sui generis, atentando no facto de que este órgão da Justiça Portuguesa pode ocupar diversos papéis/funções no âmbito da Jurisdição Administrativa.
Temos que antigamente, antes da reforma do contencioso Administrativo de 2002-2004, o MP tinha como funções as legitimidade activa (a Acção Pública), a coadjuvação do tribunal e ainda a de representar o Estado em juízo[1]. No entanto, com a reforma de 2002-2004, não se conseguiu limitar a participação do MP no nosso regime de contencioso, de modo que se manteve a possibilidade de este órgão jurisdicional propor acções (agir como Autor nas Acções Públicas- art.º 9.º/2, 40.º/1, al. b), 55.º/1, al. b), para as acções de Impugnação de Actos Administrativos, o art.º 62.º, no caso de prosseguimento das acções, quando o autor tenha desistido da lide (isto no âmbito da Acção Popular), o art.º 68.º/1, al. c), para as acções de Condenação da Administração à prática de actos administrativos devidos, ainda o art.º 73.º/ 3 e 4 do CPTA, quanto à impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão). Depois, este órgão tem legitimidade para agir como representante do Estado em juízo, nos termos do art.º 11.º do CPTA, em que o Estado será representado em juízo pelo MP, sendo que aqui actuará como garante da legitimidade passiva da pessoa colectiva Estado, nas acções contra ele propostas. E ainda poderá agir em processo como amicus curiae, isto é, pode agir como órgão coadivante do Tribunal na tomada de decisão. Assim, atentando ao panorama actual do MP, ainda herdeiro da tradição antiga no nosso Contencioso, temos que o MP poide agir como Autor (nos termos do CPTA[2]), como representante do Estado em juízo e ainda como órgão auxiliar da justiça, ajudando o Tribunal.
Como já tratado em post anterior, o MP tem diversas funções no âmbito das relações administrativas, tais como:
  •       A defesa da legalidade;
  •       Fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos;
  •            Representação do Estado e outros entes públicos;
  •            Defesa de grandes interesses colectivos e difusos[3];
  •            O patrocinio judiciário de trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos sociais[4].

Na senda do ensinamento de Vieira de Andrade, este Autor refere que o MP tem como funções, na nossa jurisdição administrativa, a impugnação de actos administrativos, nos termos da Acção Administrativa Especial (art.º 55.º/1, al.b) do CPTA, e de normas (art.º 73.º/3 do mesmo código) e ainda o pedido de declaração de ilegalidade por omissão de normas, nos termos do art.º 77.º; bem como ainda no caso de proposição de providências cautelares, nos termos dos art.ºs 112.º/1, 124.º/1 e 130.º do CPTA, bem como nas acções relativas a contratos, segundo o disposto no art.º 40.º/1 do mesmo código, na dita acção administrativa comum. Tem ainda legitimidade para propor acções populares públicas, nos termos do n.º 2 do art.º 9.º do CPTA, legitimidade conferida para defender os bens que podem ser postos em causa, tal como referidos nesta disposição. Ainda tem Legitimidade activa, nos termos do CPTA, para a proposição de acções de recurso de decisões jurisdicionais em defesa da legalidade (art.º 141), para requerer a revisão de sentenças (art.º 155.º/1), para a interposição de recursos para uniformização de jurisprudência (art.º 152.º) e ainda para a resolução de conflitos de jurisdição e competência, nos termos do art.º 135.º.
Mas, ainda no âmbito da legitimidade activa do MP, temos que este órgão da Justiça Portuguesa tem o poder de assumir a posição de autores, nos casos de desistência dos actos iniciados em processo por particulares, segundo o art.º 62.º do CPTA. Assim, conseguimos concluir que o MP tem uma ampla legitimidade para propor acções e agir como parte activa no nosso contencioso.
Dando uma vista de olhos sobre o que será a participação activa, nos casos em que o MP surge como autor, no anteprojecto do CPTA, que estará para breve a sua entrada em vigor, sabemos que, quanto ao n.º 2 do art.º 9.º do CPTA, a legitimidade do MP para propor acções para defesa de interesses e vens constitucionalmente protegidos ainda se mantém nos mesmos moldes como disposto no actual 9.º/2 do CPTA, pelo nque não temos maiores considerações a fazer a respeito desta legitimidade activa do MP. Quanto à legitimidade activa, em especial nos casos das acções administrativas reguladas no CPTA, como sejam a Acção Administrativa Comum e a Acção Adminitrativa Especial, temos que, nesta ultima, o MP tem uma legitimidade activa restringida aos casos elencados no n.º 2 do art.º 9.º do CPTA, pelo que podemos concluir que o anteprojecto de revisão do CPTA quis restringir a legitimidade para propor acções, ao MP, nos mesmos moldes que o MP o faz na Acção Pública. Pensamos que o mesmo se pode dizer quanto às acções de impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão, visto que o disposto no n.º 3 do art.º 73.º (do projecto de Revisão do CPTA), em consagrar a legitimidade activa ao MP para a proposição de acçoes, tal como elencado para o futuro art.º 9.º/2 do CPTA, ou seja, o MP só pode actuar como parte activa naquelas situações, sendo que aqui poderá requerer a desaplicação da norma sem necessidade de verificação da situação de desaplicação em três casos concretos. Do mesmo modo que os anteriores, temos que a legitimidade activa do MP para requerer a condenação da Administração à prática de actos devidos, nos termos do futuro 68.º/1, al. c) do CPTA, também se refere aos mesmos termos que a acção proposta pelo MP de acordo como o 9.º/2 do CPTA. O mesmo se diga nos termos do art.º 77.º do CPTA, quanto à condenação da Administração à emissão de normas. Por isso, pensamos que a Legitimidade activa do MP nos termos do novo CPTA sairá um pouco mais restringida do que o acontece no actual CPTA.
Mas não é só na posição activa que o MP actua. Comoreferido anteriormente, o MP também como representante do Estado nas acções, ou seja, o MP vai representar a pessoa colectiva Estado em juízo, quando este foi demandado pelo particular. Isto acontece nos casos sobre contratos e responsabilidade civil, em que o MP vai representar o Estado nas acções movidas por particulares, nos termos do art.º 11.º/2 do CPTA, sendo que só esta pessoa colectiva poderá ser representada em juízo, não o podendo ser as demais pessoas colectivas pertencentes à Administração Pública. No novo CPTA, esta representação do Estado em juízo não cessa, mantendo-se, mas possibilitando ao Estado ser presentado por Licenciado em Direito, com funções de apoio jurídico, sendo que cessa a representação do Estado pelo MP, sempre que esta situação de representação por Licenciado em Direito no MP aconteça, pelo que, há aqui uma inovação face ao regime actual[5].
Para além destas duas funções do MP, tanto como autor, bem como representante do Estado em juízo, temos ainda uma terceira função acometida ao MP, que é a de actuar como auxiliar do Tribunal, em que nesta função, actua de forma imparcial, porque não representa nenhuma parte em juízo, pelo que a sua acuação deve ser apenas a de auxiliar o Tribunal, através da vista dos autos, tendo o poder de pronúncia na fase preparatória sobre o mérito da causa, e ainda o poder de arguição de vícios não impugnados pelo impugnante, tal como previsto no art.º 85.º do CPTA actual. Assim, temos que o MP um poder de participação na decisão sobre o mérito da causa, que nos faz questionar o porquê desse poder conferido a este órgão, visto que assim consegue ter, no mesmo ordenamento jurídico-processual, papeis tão diferentes, como sejam o de autor, de representante do Estado em Juízo, e ainda coadjuvante do Tribunal, para apreciação do mérito da causa.
Atentando ao disposto no art.º 85.º do anteprojecto do CPTA, temos que os poderes de intervenção, no âmbito desta função de amicus curiae, ao MP não lhe é retirada essa função de órgão auxiliar do MP, pelo que ainda se consegue manter esses mesmos poderes de participação no processo, ao lado do tribunal. Apenas se retirou ao MP a possibilidade de, nos actos impugnatórios, suscitar questões que determinem a nulidade ou inexistência do acto impugando, sendo que no projecto de revisão do CPTA, essa possibilidade conferida ao MP ainda é permitida. Talvez quis-se restringir a actuação do MP como auxiliar do Tribunal na apreciação do mérito da causa nestas situações, por não se querer que este órgão mantenha determinados poderes, numa lógica de restrição do poder do MP no processo administrativo.
Sendo que o objectivo do novo CPTA é o de restringir a participação do MP no nosso contencioso administrativo, pensamos que, o novo CPTA (aquele que resulta do anteprojecto de revisão), vem consagrar soluções que visam a efectivação dessa mesma restrição da acção do MP como parte nos diversos meandros de actuação deste órgão no nosso Contencioso Administrativo. Se, enquanto parte activa, o MP vê restringida a sua actuação como Autor aos pressupostos de proposição de acção previstos no n.º 2 do art.º 9.º do CPTA, que se repercute nas diversas disposições do Código, quanto à legitimidade activa, pensamos que assim se quererá que o MP deixe de ter uma participação tão activa no nosso Contencioso, sendo que este mesmo processo visa, fundamentalmente, a participação dos Particulares contra a Administração, e assim, contém soluções que promovam a participação desses mesmos particulares, em juízo, quando reagem contra a Administração, e não apenas contra o Estado, como pessoa colectiva. Assim, pensamos que as restrições revistas nas diversas disposições do CPTA, quanto à Legitmidade Activa do MP, é de louvar, e assim aproxima mais os tribunais administrativos dos particulares, para assim recorrerem a estes juízos, de modo a poderem resolver as suas questões, emergentes das relações que possam ter com a Administração.
Quanto à actuação do MP como representante do Estado em juízo, obviamente que é de louvar que se mantenha essa mesma função deste órgão, porque compete-lhe a intermediação, em juízo, entre o particular e a Administração, neste sentido, entendido como Estado-Administração, ou Estado, como pessoa colectiva. No entanto, é de louvar a possibilidade concedida, que é a de já não ser necessária uma representação obrigatória pelo MP, sendo possível agora o Estado ser representado em juízo por Licenciado em Direito, sendo que cessa a representação do MP a partir da escolha por aquela mesma representação por parte do Estado. Provavelmente quis-se “acabar” com o monopólio da representação em juízo, por parte do MP, de modo a poder fornecer ao MP uma maior participação como auxiliar do Tribunal.
Quanto à participação como auxiliar do Tribunal, pensamos que a actuação do MP nesta função não seja assim tão restringida quanto se poderia pensar, sendo que, ainda assim, se conseguiu retirar uma importante função, no âmbito do desempenho deste auxilio ao Tribunal, que é o de o MP deixar de poder suscitar questões que possam determinar a nulidade ou inexistência, nos casos de impugnação de actos. Pensamos que com esta eliminação de competências do MP nesta função auxiliar, quis-se deixar ao Tribunal a apreciação do mérito da causa nestes casos, pelo que apenas o MP terá como função a de coadjuvar o Tribunal, desempenhando funções instrumentais e auxiliares do órgão jurisdicional, pelo que o MP verá limitado a sua participação, quanto à apreciação do mérito da causa nestas situações.
Dahir Bauer, Aluno n.º 20596


SÉRVULO CORREIA, A Reforma do Contencioso Administrativo e as Funções do Ministério Público, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume I, 2001, Coimbra Editora;
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 2014, Almedina.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina.
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2008, Almedina.


[1] SÉRVULO CORREIA, A Reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, I, Coimbra Editora, pág. 320.  
[2] Ver também a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, que regula o procedimento da Acção Popular, que se conjuga com o disposto no CPTA.
[3] Nos termos do n.º 2 do art.º 9.º do CPTA, e ainda a Lei da Acção Popular, já referida supra.
[4] Enumeração feita por JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 2014, Almedina, pág. 139.

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