sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Da Possibilidade de Reação Contenciosa “Contra” um Ato Tácito de Deferimento

Este é um tema que apesar da discussão teórica bastante interessante, é uma questão com implicâncias práticas muito importantes e foi exatamente por isso que me entusiasmou desenvolver com mais cuidado este tópico.
O título desde post pode parecer, à partida, algo contraditório. Pois se houve um deferimento significa que a pretensão do particular foi atendida, pelo que ele não teria qualquer razão para querer reagir contra esse ato. Contudo, a chave da questão está no facto do deferimento ser tácito - o que isso pode implicar na prática, e em última instância, se essas implicâncias serão suficientes para justificar uma ação de contencioso administrativo.
Em primeiro lugar, cabe trazer a definição de ato tácito positivo do Professor Freitas do Amaral, que é aceite na doutrina como sendo um caso em que o silêncio da Administração revela como manifestação tácita da vontade quando “perante um pedido de um particular, e decorrido um certo prazo sem que o órgão administrativo competente se pronuncie, tendo o dever jurídico de o fazer, a lei considera que o pedido foi satisfeito («deferido»).” Importante é também referir que este caso é excecional dentro do nosso Direito Administrativo e só se dá quando se trate de uma das situações expressamente previstas no 108º do CPA. Em regra, o ato tácito é negativo, ou seja, representa um indeferimento da pretensão.
Dada a definição, partimos agora para a discussão doutrinária em volta da natureza jurídica do ato tácito positivo, que vai ser relevante para a tomada de posição final visto que irão resultar delas consequências processuais diferentes. Farei referência a quatro posições sendo que as duas primeiras serviram apenas como notas históricas e só as duas mais recentes serão alvo da presente discussão.
1) Ato Administrativo Voluntário: posição defendida pelos Professores Marcello Caetano e Sérvulo Correia, segundo o ato tácito positivo seria igual ao ato expresso uma vez que os órgãos administrativos têm conhecimento que a lei dá como consequência da não pronúncia o deferimento, pelo que essa omissão teria esse objectivo. Infelizmente sabemos que muitas vezes o decurso do prazo deve-se ao excesso de trabalho destes órgãos ou outros quaisquer motivos diferentes do da vontade de deferir o pedido pelo que, na prática, este argumento cai por terra.
2) Mero Pressuposto de Recurso Contencioso: posição da autoria dos Professores André Gonçalves Pereira e Rui Manchete. Esta formulação só parece ter em conta os atos tácitos negativos, pelo que não a irmos desenvolver com mais pormenor.
3) Ficção de Acto Administrativo: apoiando esta configuração estão vários nomes de peso: os Professores Freitas do Amaral, João Caupers, Mário Esteve de Oliveira, João Tiago Silveira e, aparentemente (como mais adiante será desenvolvido) Vasco Pereira da Silva. Defendem os Professores que aqui não temos um verdadeiro ato administrativo mas sim um ficção de ato. Apesar de se aplicar todo o seu regime, quanto aos requisitos de formação da vontade da Administração, que esta não cumpriu, o Professor João Tiago Silveira explica que não se dá a aplicação dos requisitos de legalidade do ato, se não seria impossível defender a validade do ato tácito no nosso sistema.
4) Omissão Juridicamente Relevante: encontra-se só, defendendo esta teoria, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. O Professor centra a caracterização da "relevância jurídica" não só no que toca às consequências gerais das omissão mas principalmente no que diz respeito ao 108º do CPA em que se dá por satisfeita um pretensão de alguém através da inércia da Administração.
Feita a exposição das posições, cabe traze-las para o plano prático. Tal como anteriormente foi referido, a discussão será essencialmente: Ficção de Ato vs Omissão Juridicamente Relevante.
No fundo, o que queremos aqui saber é: tem o particular que viu deferida a sua pretensão interesse processual para ir a juízo com vista a obter o deferimento expresso?
Não: se considerarmos que o seu deferimento tácito é uma ficção de ato, ou seja, defendendo que ele produz os mesmos efeitos que o deferimento expresso. Segundo esta lógica, não houve violação do dever de decidir nem existe nenhuma omissão. Considera-se que o particular obteve tudo o que pretendia e que a tutela que lhe é conferida é, em tudo igual, aquela que resultaria da pronuncia expressa obtida na ação administrativa, pelo que ela não tem qualquer efeito útil.
Sim: se virmos o deferimento tácito enquanto omissão juridicamente relevante, pois neste caso o que acontece é que o particular apenas tem uma mera presunção de situação de confiança justificada. Esta presunção pode ser ilidida, pelo que o ato tácito pode mesmo ceder perante, por exemplo, interesses de terceiros que não foram devidamente considerados, ou se simplesmente não se der um investimento em consequência da confiança depositada, visto que esta não se pode prevalecer sobre eventuais lesões de terceiros de boa fé.
Aqui, já o Professor Marcelo Rebelo de Sousa se encontra acompanhado do entendimento do Professor Paulo Otero, quando apontam que o ato tácito tem sempre uma base de ilegalidade: traduz-se numa violação do dever legal de decidir (e mesmo do dever de decidir em conformidade com a lei) e do correspondente direito do particular a que essa decisão seja tomada.
De facto, tendo a concordar com esta posição porque nos casos de deferimento tácito, o que acontece é, verdadeiramente, uma sucessão de ilegalidades. Se não vejamos: i) não são ouvidos os interessados; ii) não há uma ponderação de outros interesses juridicamente relevante ou de direitos subjetivos de terceiros; entre outras diligências que possam estar em falta no caso concreto.
É mesmo por isto que penso que o Professor Paulo Otero vai mais longe e afirma mesmo que o ato tácito não é mais do que uma “permissão implícita para o exercício de uma conduta omissiva contra legem” por parte da Administração, no caso de ser dar uma situação em que a lei impunha o indeferimento de certo pedido e o seu silêncio leva a que este seja, automaticamente, deferido. O pior mesmo é que esta conduta ilegal pode resultar numa prevalência do direito do particular em detrimento dos interesses públicos e privados de terceiros, o que nunca poderá ser defensável.
Para efeitos de justificação do interesse processual, o que importante provar é que a tutela substantiva do ato tácito positivo não é igual à que confere o deferimento expresso. E é exatamente isso que faz o Professor Marcelo Rebelo de Sousa quando desenvolve a sua posição.
Quando o particular é brindado com o deferimento tácito, ele “apenas” tem o princípio da confiança a seu favor. Digo “apenas” porque é duvidoso que este princípio, por si só, seja suficiente para impedir que: i) a Administração decida em sentido contrário; ou ii) que terceiros vejam suscitar contenciosamente as ilegalidades da omissão.
Daqui podemos concluir com alguma segurança que o particular tem todo o interesse em pedir à Administração que se pronuncie expressamente sobre a questão, mesmo depois de já estar munido pelo deferimento tácito.
Com o eventual deferimento expresso, existe, nomeadamente: uma correta avaliação dos interesses em causa, a audiência dos interessados, uma fundamentação cabal da decisão tomada, entre outros aspetos importantíssimos que o ato tácito, pela sua natureza, não permite. O interesse processual justifica-se, uma vez que a tutela substantiva da pronúncia expressa se revela muito mais sólida.
Como faz notar o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, esta solução só pode ser defendida de acordo com uma visão que tem em conta a pluralidade de lados na relação jurídica administrativa, pois se é verdade que a Administração perde a legitimidade para agir em sentido inverso ao deferimento tácito, fora dos eventuais atos expressos que queira praticar, é a desconsideração de terceiros aqui presente que justifica a faculdade de poder fazer valer os seus interesses em quaisquer situações.
Defendemos por isso, com base em tudo o que foi anteriormente dito, que existe um Interesse Processual Justificado em que a Administração cumpra o seu deve legal de decidir. 
Resta então saber, qual será o meio processual adequado para fazer valer esta pretensão.
Quando o assunto é meio processual, é inevitável uma introdução histórica dos atos tácitos e da sua impugnação contenciosa. Antes da reforma de 2004, um dos traços mais marcantes do nosso sistema de Processo Administrativo era a falta de meio processual previsto para as situações de omissão legislativa.
Apenas se podiam impugnar atos administrativos “expressos”. Assim, o indeferimento tácito era uma forma de o particular ficar munido de um ato que pudesse mais tarde impugnar, de modo a obter a pronúncia da Administração acerca do pedido que havia formulado.
No entanto, desde a reforma que se prevê no CPTA, com os artigos 46.º/2/b) e 66.º a 71.º, a possibilidade de a Administração ser condenada, por um tribunal, à prática de ato devido. Deste modo, já não há necessidade de impugnar o ato tácito negativo, e é até errado fazê-lo (artigos. 66.º/2 e 51.º/4 CPTA, por maioria de razão). A doutrina tem vindo a entender que o 109.º e 175.º/3 do CPA se encontram, desde então, revogados. Há que referir ainda a posição do Professor Mário Areoso de Almeida, que é um pouco diferente, na medida em que sustenta que foi apenas revogado o artigo 109.º/1 CPA, mantendo-se em vigor os seus n.ºs 2 e 3.
Mas não é tudo. Voltando agora à posição do Professor Vasco Pereira da Silva, note-se que o Professor admite a possibilidade de reação contenciosa do ato tácito de deferimento através de uma ação especial de condenação à prática do ato devido. Admite esta solução em duas situações apenas: i) no caso do deferimento em questão não corresponder integralmente às pretensões do particular, caso em que este seria parcialmente desfavorável e ii) na circunstância de existir uma relação multilateral em que o ato tácito afetaria cada um individualmente de forma diferente, podendo a omissão em causa ser favorável a uns mas geradora de efeitos desfavoráveis para outros.
Quanto à primeira situação, não compreendi qual seria a sua aplicação prática pois se o particular dirige uma pretensão bem definida e delimitada e ela é deferida pelo mero silêncio, essa omissão irá convalidar toda a situação. Não vejo como é que o silêncio possa ser só parcialmente favorável, principalmente quando as situações do 108º do CPA são questões maioritariamente de licenças, alvarás e autorizações: que se tem ou não tem.
Mas o mais importante para a discussão em curso é a seguinte observação: ao admitir a possibilidade de reação para obter um deferimento expresso, nomeadamente através da ação de condenação, parece aproximar-se mais da tese do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, cuja decorrência lógica será, naturalmente, essa hipótese. E o Professor Vasco Pereira da Silva fala inúmeras vezes em “omissão” em vez de ficção legal como na introdução do tema...
Ainda quanto ao meio processual mais correto para intentar este tipo de ação, se seguíssemos a lógica pura das duas posições, diríamos que se seguirmos a doutrina maioritária da “ficção legal” temos apenas duas vias:
1) Ação Administrativa Comum para o reconhecimento de Direitos, com o objectivo de conferir ao particular a segurança jurídica do ato expresso, ou
2) Ação de Impugnação no caso do deferimento não fosse totalmente satisfatório. Esta solução seria claramente absurda porque levaria à não decisão, ou seja, a um retrocesso no que diz respeito aos interesses do particular. A decisão já ele tem, a intenção aqui seria ter apenas a sua confirmação expressa, pelo que esta via está, obviamente, excluída.
De facto, é interessante constatar que todos os autores são unânimes quanto à escolha da via de ação administrativa especial de condenação à prática de ato devido prevista nos artigos 46/2º b), 66º e 71º do CPTA. Mesmo aqueles que defendem a tese da “ficção legal” como é o caso dos Professores Vasco Pereira da Silva ou Mário Areoso de Almeida. Até porque aqui, apesar de um ato positivo de deferimento, temos acima de tudo uma omissão. Pelo que só pode ser reconduzida ao 66/1º e 67/1º a) CPTA.
Chegando a esta conclusão, também aqui se nota que a tese dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e de André Salgado de Matos, segundo a qual o ato tácito não é uma ficção de ato, mas sim uma omissão juridicamente relevante, será mais correta. Pois se contenciosamente só serve os propósitos do particular a utilização de uma ação que se destina às omissões, então isso significa que, pela sua natureza, o ato tácito é uma omissão.
Concluo esta análise com a defesa de que o particular que vê a sua pretensão deferida tacitamente deve ter interesse processual para requerer a sua confirmação expressa junto do Tribunal, sempre que se trate de questões de falta segurança jurídica que possam pôr em causa aquilo que o deferimento expresso pode proteger, alargando assim o leque de situações em que o particular se pode servir deste meio, de forma mais geral do que faz o Professor Vasco Pereira da Silva.

Bibliografia consultada:

Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2008
Andrade, José Carlos Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 9.ª ed., Almedina, 2007
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol I., 10.ª ed., AAFDL, 1986
Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007
Pereira, André Gonçalves, Erro e ilegalidade no acto administrativo, Edições Atica, 1962
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009
Silveira, João Tiago, O Deferimento Tácito - Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência do Pedido do Particular à luz da recente reforma do Contencioso Administrativo,Coimbra Editora, 2004.
Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007

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