domingo, 7 de dezembro de 2014

MINISTÉRIO PÚBLICO, QUANTAS FARDAS VESTES TU?

Ministério Público, quantas fardas vestes tu?
Simplicity is the ultimate sophistication[i]

Sumário: I. Introdução; II. Tipos de Intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo; III. Breve olhar sobre a Proposta de Alteração do CPTA; IV Análise Crítica; Solução Avançada; V. Conclusão: No reason to stay, it’s a good reason to go

I.                   INTRODUÇÃO
A Reforma de 2002/2004 foi um marco essencial na história do contencioso administrativo português. Finalmente e de forma plena, deu-se cumprimento às exigências constitucionais de garantir a tutela jurisdicional efectiva dos particulares tal como reclama o Art 20º CRP e, em especial, o Art 268º/4. É desde este momento que se pode falar da subjectivação do contencioso administrativo, permitindo o largo acesso dos particulares à justiça administrativa para aí defenderem os seus direitos e interesses legalmente protegidos. Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA “o legislador quis tornar equívoco desde o início, que os processos do contencioso administrativo são de partes”[ii].
A instituição de um “processo de partes” levou à superação de velhos traumas do contencioso administrativo onde “nem o particular nem a Administração eram considerados como partes, antes estavam em juízo para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público”[iii]. Ao particular não eram reconhecidos direitos subjectivos perante a Administração - como descreve HARIOU este actuava no processo como “um ministério público, efectuando a repressão de uma infracção”[iv]. Por seu turno, e tal como descreve VASCO PEREIRA DA SILVA, a Administração estava em juízo como “autoridade recorrida”, para auxiliar o juiz na tarefa de estabelecimento da legalidade e do interesse público - uma consequência advinda da época do Administrador-Juiz, caracterizada pela promiscuidade entre as funções soberanas de Justiça e Administração. A configuração de um processo justo, imparcial e equitativo exige que o juiz seja um terceiro em relação aos demais, essencial é, por isso, que se distancie dos interesses antagónicos que lhe são apresentados.
Corrigindo os erros do passado, o actual Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) determina expressamente que particular e Administração ocupam o lugar de partes no processo, e de partes iguais, ao consagrar no seu Art 6º o princípio da igualdade efectiva de participação processual.
Contudo, a subjectivização não é nem poderia ser total. Num Estado de Direito (Art 2º CRP), a Justiça Administrativa, para além de cumprir uma função subjectiva de protecção plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares (Art 268º/4 CRP), cumpre ainda uma função objectiva. Desta feita, outra função basilar do contencioso administrativo é repor, manter e fortalecer a legalidade democrática, enquadrando também aqui a defesa do interesse público (Art 3º/2 CRP) – entenda-se esta defesa não enquanto intromissão na discricionariedade da Administração, no âmbito de escolhas de oportunidade e mérito (poder completamente vedado pelo Princípio da Separação de Poderes e Autonomia entre os poderes soberanos), antes como defesa da atribuição primária do Estado constitucionalmente consagrada, de prossecução do interesse público enquanto atribuição sempre balizada pelos quadros de juridicidade[v].
Tem-se como muito claro que a defesa da legalidade democrática não pode ficar dependente da actuação dos particulares e da sua vontade de vir a juízo. Os particulares hoje enquadrados como parte no processo administrativo têm sim o direito de recorrer à tutela jurisdicional. Eles pretendem a defesa das suas posições jurídicas face à Administração; a reposição da legalidade por revisão dessas posições pelo tribunal, ainda que absolutamente necessária, é apenas consequente. Os particulares já não são tidos como meros colaboradores da Administração na reposição da legalidade, e mesmo quando esta concepção clássica vingava não havia um dever de propor acções, dependia sempre de uma vontade (“altruísta”[vi]) do particular em ir a juízo.
Assim se começa a revelar o fundamental papel do Ministério Público (MP) no Contencioso Administrativo. A função objectiva do processo administrativo exige a presença de um actor desinteressado, cujo único fito seja o cumprimento dessa função, posição que no contencioso administrativo português cabe ao MP o que está claramente explanado no Art 219º/1 CRP que consagra a função e o estatuto do MP. Compete ao MP, e para aquilo que nos é útil em termos de contencioso administrativo: i) representar o Estado; ii) defender os interesses que a lei determinar; iii) defender a legalidade democrática[vii].
Estas funções constitucionalmente determinadas, e com o quadro genérico no Art 51º Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), estão depois desenvolvidas no CPTA, onde se vem a estabelecer os meios que o MP dispõe para cumprir as suas atribuições.
Como veremos de seguida, os meios disponíveis são ainda bastantes, o que pode levantar algumas preocupações. Actualmente, o Ministério Público detém um “moderno pronto-a-vestir[viii], saindo para o cumprimento das suas atribuições com várias fardas de acordo com as diferentes ocasiões que merecem a sua presença. Associada a cada farda estão diferentes funções e poderes de intervenção; a cada farda está também associada uma aparência exterior valorizada pela comunidade. Nesta pequena e ingénua reflexão pretendemos analisar a bondade desta solução, e averiguar se de alguma maneira o regime, por ser tão diverso e complexo, acaba por fazer com que o sistema perca congruência e unidade.
Estando a decorrer, actualmente, o processo de reforma do CPTA, parece-nos igualmente relevante espreitar as alterações propostas, para que também o futuro próximo (provável) integre as nossas reflexões.
A análise de Direito Comparado não faz parte do objecto desta reflexão, ainda que se revele muito interessante e útil, a falta de espaço a isso nos obriga. Ainda assim, parece importante alertar para o facto de o sistema português de intervenção do MP, como figura distinta do juiz e dos particulares que vão a juízo, é dos mais complexos a nível europeu. Em vários países europeus a figura próxima do nosso Ministério Público assume uma das duas posições possíveis dentro da dicotomia i) intervenção parcial para a promoção da solução conforme com a legalidade[ix] ou; ii) patrocínio judiciário público da Administração estadual[x]. Pelo contrário, a solução portuguesa revela-se muito mais complexa já que o MP assume, em ocasiões distintas, os dois pólos descritos[xi].

II.                TIPOS DE INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Como começámos por referir, o MP, no âmbito do contencioso administrativo, pode usar várias fardas, ou seja, pode posicionar-se no processo de diferentes formas. Cabe fazer uma breve referência a cada uma delas, sem que nos dispersemos no seu regime específico. Antes pretendemos atender com maior acuidade às finalidades específicas de cada uma das figuras relacionadas com as atribuições constitucionais do MP.
      Acção pública
A Acção Pública é o “poder de agir em juízo administrativo (), dirigido à obtenção de uma pronúncia jurisdicional de mérito sobre a pretensão de repressão da violação da legalidade democrática numa situação determinada e concreta ou devida à actividade normativa da Administração”. A acção pública configura-se essencialmente como a possibilidade do MP agir como parte activa no contencioso administrativo – em termos genéricos, Art 9º/2, e especificamente Art 41º/1 b) e Art 41º/2 c) (acções relativas a contratos), Art 55º/1 b) (impugnação de actos administrativos), Art 68º/1 c) (acções de condenação), Art 73º/2,3 e 4 (declaração de ilegalidade de normas) Art 77º/1 (declaração de ilegalidade por omissão de normas) – todos do CPTA. Ainda no âmbito da acção pública, o MP pode substituir-se à parte activa, caso esta desista (Art 62º CPTA). Por último, é conferida a possibilidade do MP recorrer de qualquer decisão jurisdicional (i.e, independentemente, do meio processual), mesmo não tendo sido parte durante o processo – Art 141º/1 CPTA.
      Modalidade sui generis de Assistente Público[xii]
Segundo SÉRVULO CORREIA[xiii], o Art 85º CPTA consagra um “poder processual híbrido”, difícil de explicitar. Nos termos aí descritos, o MP pode intervir no processo mesmo não sendo parte. A sua intervenção dependerá de estarem em causa direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º (85º/2 CPTA). Caso, e tendo esta filosofia presente, o MP decida intervir, a lei disponibiliza-lhe uma série de mecanismos[xiv]. Estes mecanismos consubstanciam um ponto de equilíbrio, assegurando que a protecção de interesses relevantes não fica na completa disponibilidade das partes, sem que com isso se ofenda o princípio do dispositivo.
No âmbito de processos impugnatórios, o MP pode ainda invocar quaisquer questões que determinem a nulidade ou inexistência do acto impugnado (Art 85º/4 CPTA), independentemente de quais os interesses em presença (ou seja, sem necessidade de verificação do âmbito material determinado no Art 85º/2 CPTA). Esta solução final facilmente se compreende: Como bem evidencia SÉRVULO CORREIA, “o reforço do grau de invalidade basta para justificar a intervenção do MP para a promoção do controlo da legalidade objectiva sem que a inerente constrição do dispositivo tenha de apoiar-se na necessidade de tutela dos interesses qualificados”[xv].
      Patrocínio judiciário do Estado
O patrocínio judiciário do Estado encontra-se previsto no Art 11º/2 CPTA. É a este propósito que se justifica a qualificação do Ministério Público por FREITAS DO AMARAL como um “corpo de advogados do Estado”[xvi]. Aqui se prevê que o MP assuma a representação do Estado em juízo nas acções relativas a contratos e responsabilidade civil.
Sendo que a Constituição prevê em termos gerais a representação do Estado, fica por explicar a limitação consagrada no CPTA de representação do Estado pelo MP a um número reduzido de acções onde estão em causa os interesses patrimoniais do Estado, obedecendo ao disposto no Art 53º do Estatuto do Ministério Público (EMP)[xvii]. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS adiantam que a restrição interpretativa advém de razões históricas “aliadas à contraposição entre definição e defesa do interesse público mediante acto de autoridade e defesa processual de meros “interesses patrimoniais (…)”[xviii].
Nessa medida, deixamos duas pequenas reflexões:
i)        Se o texto constitucional não coloca qualquer tipo de restrição, antes prevê a representação do Estado pelo MP em termos gerais, parece difícil de aceitar que a lei o faça, atendendo apenas a motivos históricos. Estas motivações, porque históricas, revelam-se insuficientes para justificar tal solução nos dias de hoje. As sucessivas revisões constitucionais já teriam dado oportunidade de o legislador constituinte (derivado) integrar essas soluções históricas se as considerasse convenientes, o que nunca aconteceu; Pelo contrário, já houve intenções de acabar com a incumbência desta tarefa constitucional ao MP, como adiante referiremos. E se intenções não reveladas pouco nos ajudam na interpretação do texto constitucional, a verdade é que fica também muito difícil segurar opções da lei ordinária de grande relevância prática em meras justificações históricas.
ii)      Perante a determinação da competência do MP em função dos interesses patrimoniais do Estado tal como prevê o EMP, fica também difícil de entender a medida concreta do âmbito material de competência do MP determinada pelo CPTA e circunscrita às “relações contratuais e de responsabilidade” (Art 11º/2). Se o critério é somente esse, os interesses patrimoniais do Estado, é demasiado ingénuo considerar que esse interesse só se revela no âmbito daquelas acções. Fica desde logo por explicar a exclusão das relações tributárias do âmbito de representação pelo MP (Art 15º CPPT).

III.               BREVE OLHAR SOBRE A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DO CPTA
I. Invertendo a ordem supra considerada, começamos por referir as alterações ao nível do Patrocínio Judiciário. A representação do MP mantém-se circunscrita às acções relativas a contratos e a responsabilidade civil, contudo, desta vez somente a título supletivo[xix]. O Estado poderá optar por recorrer ao patrocínio por mandatário judicial, sempre que lhe for mais conveniente.
Se a redacção actual já deixa dúvidas quanto ao efectivo respeito pelo comando constitucional que designa o MP como representante do Estado, esta nova redacção proposta revela-se ainda mais discutível. Na verdade, a nova redacção pretende cumprir a imposição constitucional através da sua concretização meramente formal, contudo, e o cumprimento material e efectivo dos preceitos constitucionais é o que releva[xx], o que a lei efectivamente pretende e consegue é contornar o preceito constitucional ajustando-o à realidade mais conveniente.
De iure condendo, compreendemos a solução e temo-la como a mais eficiente face ao sistema presente. De facto, actualmente o Estado é dotado de serviços jurídicos muito desenvolvidos e que estão muito mais integrados, próximos e preparados para os problemas que podem surgir no meio litigioso do que o MP. Quando os serviços não se consideram suficientemente preparados, dificilmente o MP estará em melhor posição, pelo que a solução será sempre recorrer ao outsourcing de serviços jurídicos. Se o preceito constitucional está desconforme com a realidade dos dias de hoje, revelando-se penoso, ineficiente e até, por isso, menos protector dos interesses do Estado, então a única solução é alterá-lo.
Quanto à participação do MP enquanto Assistente Público existem também alterações na proposta que importam referir[xxi]. Desaparece o preceito que permite ao MP, nos processos impugnatórios, arguir causas de nulidade ou inexistência diversas das que foram arguidas na petição. Alteração que nos causa alguma estranheza tendo em conta o ponto de equilíbrio encontrado na solução actual, e por nós já referido. A nova redacção do artigo revela ainda grandes preocupações quanto à oportunidade da participação do MP, regulando prazos e garantindo o exercício do contraditório das partes envolvidas.
Por último, a Acção Pública do MP. Ainda que as alterações propostas não sejam muito relevantes em termos gerais, vem uniformizar-se o critério de actuação do MP. Se em muitos preceitos da lei do processo, a legitimidade do MP não é atribuída em termos gerais, mas antes balizada por um critério material de relevância - Art 9º/2, Art 68º/1 c)[xxii], outros são os preceitos que o âmbito de legitimidade do MP não é de nenhuma forma balizado, muito menos concretizado, senão pelas atribuições constitucionalmente consagradas (Art 219º/1 CRP, repetidas no Art 51º ETAF para o específico âmbito do contencioso administrativo) – Art 55º/1 alínea d)[xxiii].
Na proposta de alteração eliminam-se estas discrepâncias que permitem ao MP formular diferentes filosofias quanto à sua participação como parte activa no processo consoante as acções em causa. O novo Art 55º/1 d) adopta também um âmbito material restrito de actuação, seguindo a fórmula já conhecida de defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º. Todos os outros momentos de determinação da legitimidade activa no CPTA adoptam semelhante critério.
Claro que este raciocínio não se aplica à acção de impugnação de normas e declaração de ilegalidade - o vício da ilegalidade é de tal modo grave por si mesmo que a actuação do MP, neste âmbito, não tem como ser balizada. Não pode vigorar no ordenamento jurídico uma norma ilegal, e o MP deve agir no sentido de repor essa legalidade sempre que estiver em falta.
Há apenas que referir um caso de maior afastamento quanto ao critério comummente aplicado, que é o que surge nas acções relativas a contratos. Determina-se quanto a estas que a legitimidade activa do MP depende de estarem em causa situações de grande relevância jurídica ou social ou de ilegalidade grave e ostensiva – Art 77º - A/1 alínea b) da proposta em discussão.
No fundo, e afirmando sem grandes reflexões, cremos que este critério não diverge muito daquele que se adopta relativamente a todas as outras acções: “a grande relevância jurídica e social” lembra o interesse público especialmente relevante bem como alguns valores consagrados no Art 9º/2 CPTA com maior relevância social; a “ilegalidade grave e ostentativa” remete para a necessidade de não perturbar o comércio jurídico e a estabilidade das relações contratuais por minudências jurídicas que se mostrem irrelevantes quando contrapostas aos benefícios resultantes da continuidade da relação contratual. Este é já um critério de actuação do MP que está implícito quando a Constituição lhe delega a defesa da legalidade democrática (Art 219º/1); afinal o MP não deve perturbar a paz jurídica com invalidades de reduzida importância, se não existir um interesse adicional que force essa perturbação. Por vezes, e em nome da paz jurídica, deve-se abdicar da prossecução da legalidade democrática objectiva e isoladamente considerada se nada mais a reclamar. Parece-nos que, no entanto, teria sido preferível a adopção de um critério mais próximo em termos literais daqueles que já estavam estabelecidos no Código. Ainda que a igualdade de critérios fosse impossível pelas especificidades que se levantam na Contratação Pública, e que estão fortemente dependentes de formulações da União Europeia, sempre teria sido útil evitar a criação de mais um conceito indeterminado.
O que importa retirar da nova redacção do CPTA é o intuito de balizar toda a actuação do MP, fornecendo-lhe um critério material de actuação comum a todas as acções, desta forma garantindo uma intervenção do MP congruente e sistemática, sempre orientada pelo mesmo nível de preocupações.

IV.              ANÁLISE CRÍTICA; SOLUÇÃO AVANÇADA
Depois de toda esta análise quanto ao presente e futuro do Ministério Público no Contencioso Administrativo português, cabe revelar as nossas preocupações e, dando-lhes sentido, principiar uma solução para as mesmas. Afinal, melhor do que fazer parte do problema é, também e sempre, fazer parte da solução.
Como revelámos inicialmente, é-nos difícil aceitar que o MP possa adoptar tão distintas fardas na Justiça Administrativa. E este não é um problema circunscrito à lei do processo, ou pelo menos não é aqui que ele surge, antes tem origem nas atribuições constitucionalmente atribuídas  ao MP.
Há uma clara diferenciação de posicionamento do Ministério Público enquanto agente da acção pública e assistente público por um lado, e enquanto representante do Estado em juízo, por outro. Se nos primeiros dois casos o MP faz um juízo próprio quanto à legalidade democrática e aos interesses públicos relevantes que podem legitimar a sua intervenção, no segundo caso esse juízo é-lhe, em princípio, vedado pois cumpre-lhe defender uma determinada visão de legalidade democrática e dos interesses públicos relevantes, tal como encarada pela Administração estadual. Dizemos em princípio porque o Art 69º EMP soluciona em parte, e apenas nos casos gritantes[xxiv], este problema, permitindo que o MP se faça substituir por advogado quando haja conflitos entre interesses que o MP deva representar.
Contudo, este estado de coisas e os “panos quentes” adoptados não parecem satisfatórios. A verdade é que o estatuto de independência e de autonomia do MP (com consagração constitucional – Art 219º/2) não deveria permitir tal solução. A autonomia deve ser protegida em todo e qualquer caso, nunca sujeitando o MP às interpretações jurídicas que o Estado, enquanto entidade demandada, pretenda alegar e defender, e não apenas nos casos de contradição extrema. E mesmo que se insista que o Art 69º EMP configura protecção bastante, então há que reclamar a desaplicação desta solução à luz do princípio da aparência, essencial às relações institucionais entre as diferentes entidades que actuam em prol do Estado de Direito Democrático. A existência de uma norma de salvaguarda indicia a possibilidade de existência de conflitos onde eles poderiam ser totalmente evitados; Mais grave ainda é a natureza desses conflitos - as relações de poderes do Estado (entendido aqui como Estado soberano e não enquanto entidade demandada), e a dialéctica difícil de sustentar entre autonomia e isenção versus representação e patrocínio judiciário.
 O MP não só tem de ser independente e autónomo como essencial é também que ele isso transpareça. A imagem de isenção e transparência perante a comunidade jurídica e política é não só necessária como extremamente benéfica e não deve ser posta em risco em situações, que apesar de tudo, não se revelam assim tão eficientes.
Como já antes referimos, outro grande óbice desta solução é a sua falta de eficiência face às necessidades que os dias de hoje impõem. O natural distanciamento do MP relativamente à actividade diária do Estado faz com que este não conheça tão bem as malhas da sua actuação. Nestes termos, a preparação da defesa pelos serviços jurídicos internos é sempre muito mais incisiva e eficiente do que qualquer defesa que se possa esperar do MP.
A solução, neste caso, só pode ser de iure condendo, porque passa imperativamente por uma futura alteração constitucional das atribuições do MP[xxv], já que, apesar de todas as inconveniências da actual solução, seria sempre muito mais inaceitável (e insustentável, porque rapidamente sujeita a uma declaração de inconstitucionalidade do TC) a desobediência à Constituição.

Quanto, às outras duas fardas do MP há que também tecer algumas considerações. É que neste caso, em ambas as figuras o MP deve promover a efectiva observância do Direito, pelo que cabe averiguar se existem finalidades específicas que justifiquem a existência de ambas.
SÉRVULO CORREIA afirma que “tem de se encontrar na diferente equação dos interesses sustentados a razão da actuação, num caso, por iniciativa própria e, no outro, por dever da prática de determinados actos processuais como sujeito necessário e imparcial da relação processual”, no entanto, perece-nos a nós, e salvo todo o respeito, que o Autor tem algumas dificuldades em definir os elementos que justificam esta diferente ponderação de interesses, ou até mesmo identificar a efectiva ponderação de interesses a que se refere. Não nos parece certo caracterizar especialmente o MP enquanto assistente público como “sujeito necessário e imparcial da relação processual” sem repetir o mesmo para a figura da acção pública; essa falta pode induzir no erro de que essas mesmas qualidades não se exigem quando o MP actua no processo como Autor.
Ora, ser Autor não significa estar em juízo a defender interesses directos e efectivos próprios (seguindo a delimitação alargada do actual art 55º/1 a) CPTA), significa apenas ser parte activa e ter pretensões para apresentar em tribunal. O MP actua sempre imparcialmente porque sempre e apenas em defesa da legalidade e dos interesses públicos relevantes; a sua actuação é igualmente sempre necessária porque o MP não tem um direito a ser Autor mas antes um poder-dever a ser parte activa no processo, um poder funcionalmente orientado para prosseguir as suas incumbências constitucionalmente atribuídas.
Em ambas as figuras o MP sempre se guiará pelos mesmos ditames, não só porque são comuns as atribuições do MP no exercício de ambos os poderes processuais (defesa da legalidade democrática e protecção dos interesses públicos relevantes - Art 219ºCRP e Art 51º ETAF), como a lei processual estabelece um âmbito material muito semelhante para ambas, mais ainda após a reforma – afinal tudo se vai resumir a situações de defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º.
Repare-se que desde a Jurisprudência do Tribunal Constitucional que acolheu as preocupações com o respeito pelo princípio do contraditório levantadas pelo TEDH[xxvi] e que foram acolhidas pela lei processual, que a figura do 85º CPTA perdeu muitas das suas especificidades. Tudo o que actualmente o MP consegue fazer através da figura do assistente – dar parecer sobre questões de mérito em matérias consideradas especialmente relevantes, bem como arguir invalidades especialmente graves (geradoras dos vícios jurídicos de nulidade ou inexistência) que possam afectar os actos administrativos discutidos em juízo, é também acessível através da acção pública, basta expô-las na petição inicial ou em articulados supervenientes, quando admitidos. E como já assinalámos supra, esta redução de funções do MP enquanto assistente público é ainda reforçada com a alteração proposta.
Perante todas estas semelhanças, e faltando diferenças que justifiquem a existência de regimes diferenciados perguntamo-nos se razões de sistematicidade e simplificação não apontam no sentido de ser preferível atribuir ao MP um modo de intervenção único no contencioso administrativo.
Se reduzíssemos a intervenção do MP à Acção Pública isso não significaria uma restrição dos seus efectivos poderes no processo, das suas “armas” para prosseguir as atribuições constitucionais – e este é o nosso ponto fulcral.
A acção pública permite tudo isso, desde que maximizadas as suas potencialidades – aí o MP intervém no processo como parte: pode agir sozinho em juízo ou pode juntar-se a uma parte activa já constituída, seja através de litisconsórcio seja através de coligação; Mais, mesmo que o MP coloque uma acção distinta dos particulares mas sobre as mesmas questões de facto e de Direito, pode o Juiz decidir sempre pela apensação de processos caso esta se revele útil (Art 28º CPTA). Significa isto que o MP não tem de se abster de participar no processo porque os particulares já estão a agir em juízo, tal como o Art 85º permite que ele participe no processo como assistente mesmo estando particulares já à procura de obter a reposição do Direito, ainda que através de pretensões que não sejam apenas a “simples” defesa da legalidade.
Através da Acção Pública, o MP tanto pode intervir no impulso processual (parte original), como mais tarde, bastando uma modificação subjectiva da instância permitida pela lei. Mais uma vez, nenhum constrangimento resulta daqui em relação à figura do Art 85º CPTA. Como assistente público, o MP não tem de formular as suas preocupações logo no momento inicial do processo, antes e no máximo até 10 dias depois da apresentação da contestação (Art 85º/5 CPTA). Através da intervenção superveniente como parte a mesma facilidade está garantida.
Também em termos de conteúdo não vemos dificuldades de maior. As questões de mérito que podem ser objecto de análise no parecer que o MP formula através do Art 85º CPTA podem facilmente ser transpostas para um articulado de parte processual – em ambas as peças o MP tem em vista as mesmas preocupações, e em ambas estas são formuladas de forma objectiva e imparcial. Ser parte não é aqui relevante porque não há um interesse privado ou próprio do MP – tudo se reconduz sempre à defesa da legalidade democrática e aos interesses públicos demarcados como relevantes. Não se diga que na Acção Pública o MP tem de adoptar uma posição e não o tem de fazer no parecer. O parecer pretende chamar à atenção do juiz para certas questões consideradas relevantes, sendo que esse objectivo não se perde no caso de o MP as formular na petição inicial enquanto actor público. Se houvesse efectiva diferenciação e o MP pudesse exercer maior influência no processo como assistente do que como parte, então frustrava-se de forma inaceitável, o principal mecanismo de actuação do MP no seio do contencioso administrativo, sendo que ele seria sempre preterido.
Os prazos, ainda que sejam pouco relevantes para a reflexão que hoje nos ocupa, acabam por também favorecer a nossa solução. O Art 85º CPTA depende da propositura da acção por quaisquer outros sujeitos processuais que não o MP, pelo que beneficiam sempre de prazos muito mais apertados do que aqueles que se aplicam ao MP quando ele intervém no processo a título principal (veja-se, por exemplo, o estabelecido no Art 58º/2 CPTA para a impugnação de actos). A propositura da acção pelo MP diminui as hipóteses de actos ou omissões relevantes se consolidem, impossibilitando a sua correcção e a desejada harmonia com a ordem jurídica.
Acabamos por concluir que não só não existem diferentes interesses que preencham de forma diversa as duas figuras, como tudo o que a figura sui generis de assistência pública permite ao MP, a acção pública também o permite desde que exploradas as suas potencialidades. Inevitavelmente somos obrigados a concluir que nada no sistema jurídico suporta a manutenção deste estado de coisas; pelo contrário, demos já várias pistas no sentido de esta solução se revelar pouco interessante para a ordem jurídica.

V.                CONCLUSÃO: NO REASON TO STAY, IT’S A GOOD REASON TO GO[xxvii]
Chegados ao fim, cabe descobrir o que fazer com todas as fardas que foram atribuídas ao MP - devem continuar no armário, ou deverão ser distribuídas por quem retirar mais utilidade delas? Em última instancia, deverá alguma delas ser colocadas totalmente de parte, tão desadequada que é para os dias de hoje?
Como demonstrámos supra, não há como abonar em favor da opção constitucional de manter a representação do Estado junto do MP. É ineficiente e desvirtua as necessárias qualidades de isenção, independência e imparcialidade que devem pautar a imagem e o comportamento do MP. Assim, no reason to stay, it’s a good reason to go.
Claro que compactar com a solução adoptada pela proposta de lei não é aceitável, nem digna de um Contencioso Administrativo que por tanto passou até superar o seu défice de Constitucionalização. Recuos e passos de duvidosa orientação não deveriam ser mais admissíveis. A solução constitucional deve ser ponderada e, preferencialmente, alterada, de modo a atribuir a tarefa constitucional de representação do Estado a outra entidade competente.

Também a assistência sui generis figurada pelo MP, ainda que não se revele desconforme ao sistema, acaba por contribuir com muito pouco para o desempenho eficiente das funções do MP. Convém não esquecer que todo o Direito processual é instrumental e não tem um fim em si mesmo; as suas soluções só se justificam à luz das posições substantivas e enquanto contribuírem para uma melhor justiça material. Se a realidade é complexa, o Direito não deverá contribuir para aumentá-la, pelo contrário. Uma das funções básicas de qualquer sistema é reduzir a complexidade da realidade que integra permitindo uma melhor organização e actuação dos sujeitos intervenientes; o sistema jurídico não escapa a esta lógica nuclear. Assim, e mais uma vez, no reason to stay, it’s a good reason to go.
Resta uma única farda ao MP - a acção pública. Esta sim segue todas as medidas e tecidos correctos de forma a equipar o MP com tudo o que precisa para actuar em processo. Por si só, a acção pública revela-se suficientemente apetrechada e flexível de modo a garantir que o MP cumpre os seus desígnios constitucionais no âmbito da Justiça Administrativa. Todas as justificações abonam em favor da sua manutenção na lei do processo, pelo que apenas há que estimar esta farda, e saber usá-la nas ocasiões que a reclamam.
A simplicidade de uma única farda é, assim, a melhor opção.




[i] Leonardo Da Vinci
[ii] VASCO PEREIRA DA SILVA in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, p.254
[iii] Ibidem, p. 255
[iv] MAURICE HAURIOU, in ”Note sous C.E., 8 Dècembre de 1899 – Ville d’Avignon”, Sirey, Paris 1900, p.73
[v] Expressão que dever ser entendida como legalidade em sentido amplo; A obediência é devida não só à lei (ordinária), como a todo o Direito vigente na ordem jurídica, significando em primeiro lugar a conformidade com a Constituição bem como com o Direito Europeu e o Direito Internacional a que Portugal está vinculado (Art 8º/3 e 4 CRP)
[vi] Como refere em tom irónico, VASCO PEREIRA DA SILVA, in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, p.256
[vii]Art 219º
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (negrito nosso).
[viii] Expressão tipicamente utilizada por VASCO PEREIRA DA SILVA, ainda que com outro sentido, de evidenciar a multiplicidade de formas de actuação crescentemente utilizadas pela Administração Pública e desde a emergência do Estado Social, abandonando-se a “farda única” de actuação através de acto administrativo. Ver, por exemplo, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, p.78
[ix]  Entre outros, sistema Francês; Ver SÉRVULO CORREIA in “A Reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, p. 299
[x] Entre outros, sistema Italiano; Ibidem
[xi] Neste sentido, SÉRVULO CORREIA in “A Reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, p. 300.
[xii] Designação avançada por SÉRVULO CORREIA dada a dificuldade de reconduzir a figura a outros institutos típicos do Contencioso Administrativo – “não se trata propriamente do exercício de direito de acção, visto que o MP não deduz com autonomia qualquer pedido ou causa de pedir. Mas também já não nos encontramos perante a clássica actuação enquanto amicus curiae imparcial, zelando tão só pelas melhores feitura de justiça e aplicação do Direito”, in “Direito do Contencioso Administrativo”, vol 1, 2005, p. 732.
[xiii] Ibidem, p.732
[xiv] Os poderes do MP no âmbito deste meio de intervenção no processo foram em tempos muito mais alargados. Relevante para esta actual restrição foram os Acórdãos do TC (Ac 412/2000, Proc 975/98; Ac 157/2001, proc. 67/01) que seguiram a jurisprudência do TEDH (Caso Lobo Machado, de 20 Fevereiro 1996) quanto à intervenção do MP e o respeito pelo princípio do contraditório. A jurisprudência do TC, bem como a sua reflexão na lei do processo, foi muito criticada pela doutrina por se revelar excessiva e pouco ponderada. Neste sentido, SÉRVULO CORREIA in “A Reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”; CARLOS CADILHA in “A reforma do contencioso administrativo: a intervenção do Ministério Público no recurso contencioso de anulação”, Revista do Ministério Público, p. 58 e ss;
[xv]  SÉRVULO CORREIA, in “Direito do Contencioso Administrativo”, vol I, 2005, p. 734
[xvi] FREITAS DO AMARAL, in “Direito Administrativo”, IV, 1988, p. 174
[xvii] Artigo 53.º
Competência
Compete aos departamentos de contencioso do Estado:
a) A representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais;
[xviii] Os Autores explicam que durante muito tempo o Ministério Público aparecia mais “sob uma vertente mais funcional do que orgânica”, pelo que em seu nome actuavam funcionários da Administração. Ver JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2007, p.216
[xix]Artigo 11.º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
(…)
 3 - Nas ações propostas contra o Estado em que o pedido principal tenha por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, o Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo da possibilidade de patrocínio por mandatário judicial próprio nos termos do número anterior, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que aquele esteja constituído.
[xx] A interpretação de quaisquer normas de Direito, nomeadamente as normas constitucionais, deve seguir o enquadramento de todos os elementos interpretativos, sendo que, em caso de divergência, deve prevalecer o elemento teleológico, se o seu resultado ainda puder ser atribuído ao sentido possível da norma.
[xxi] Artigo 85.º
(…)                                                                                                                                
1 – No momento da citação dos demandados, é fornecida cópia da petição e dos documentos que a instruem ao Ministério Público, salvo nos processos em que este figure como autor.
2 – Em função dos elementos que possa coligir e daqueles que venham a ser carreados para o processo, o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º.
3 – Nos processos impugnatórios, o Ministério Público pode invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na petição inicial e solicitar a realização de diligências instrutórias para a respetiva prova.
4 – Os poderes de intervenção previstos nos números anteriores podem ser exercidos até 30 dias após a notificação da junção do processo administrativo aos autos ou, não tendo esta lugar, da apresentação da última contestação, disso sendo, de imediato, notificadas as partes para se pronunciarem.
[xxii] De forma mais ou menos semelhante nestes diferentes preceitos, a actuação do MP está sempre dependente de uma valoração. É necessário que a intervenção do MP surja em função da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º;
[xxiii] Pelo contrário, neste preceito não há qualquer limitação, simplesmente se refere a legitimidade activa do MP para a impugnação de actos, i.e a impugnação de quaisquer actos, independentemente de qualquer especial relevância material.
[xxiv] “Trata-se de, no entanto, por certo, de um remédio reservado a casos extremos” SÉRVULO CORREIA in “A Reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, p. 317
[xxv] Solução que já foi discutida aquando da Revisão Constitucional do 1997, tal como refere JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, in “Constituição da República Portuguesa anotada”, 2007, p. 215 e 216
[xxvi] Ver nota 14;
[xxvii] Expressão comum, Autor desconhecido


Maria Beatriz Morais Sarmento
Nº21946

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