sábado, 6 de dezembro de 2014

A Acção Popular

Segundo o Económico, um conjunto de 477 pequenos accionistas do BES, através da Associação de Investidores e Analistas Técnicos, avançou com duas acções populares autónomas junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. A primeira é uma acção administrativa especial contra o Banco de Portugal, pedindo a declaração de nulidade da medida de resolução traduzida na transferência de activos a favor do Novo Banco. O fundamento é o de que a resolução aplicada ao BES constitui "um verdadeiro confisco ou expropriação sem justa contrapartida" e foi feita na violação do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 17.º da Carta de Direitos Fundamentais, que garantem o direito de propriedade como direito fundamental. A segunda é uma acção de responsabilidade civil contra o Estado, o Banco de Portugal e o seu governador, pelas falhas graves de supervisão, que vieram a culminar com as medidas de resolução, bem como pelas declarações do governador do Banco de Portugal garantindo a solvabilidade do BES, nos dias que antecederam a decisão de resolução. O fundamento é o de que estas declarações, produzidas com grave negligência, foram determinantes para muitos accionistas comprarem acções e outros não venderem as que detinham, enquanto alguns investidores qualificados, provavelmente com informação privilegiada, se desfizeram atempadamente das mesmas. Quis iuris?

  • Enquadramento
Desde logo, é necessário esclarecer alguns aspectos relativos aos sujeitos envolvidos. Do lado activo, a Associação de Investidores e Analistas Técnicos é uma associação de Direito Privado que tem por objecto específico a defesa dos interesses dos investidores e analistas técnicos do mercado de capitais (artigo 3 dos Estatutos). Do lado passivo, temos o Banco de Portugal, que é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, e de património próprio (1 da LOBP). Tem como competência exercer a supervisão das instituições de crédito (17 da LOBP). Como tal tem ao seu dispor várias operações de intervenção, nomeadamente a aplicação de uma medida de resolução de constituição de um ou mais bancos de transição e transferência (parcial ou total) da actividade da instituição que se encontre em dificuldades financeiras para esse novo banco (145-C/1 b), 145-G do RGIC). 

  • Acção Popular
A acção popular está consagrada no artigo 52/3 da CRP e regulada na Lei 83/95. Ela caracteriza-se pelo seu caracter objetivo pois não visa a defesa de posições jurídicas subjetivas. Num Estado de Direito, o Contencioso Administrativo para além da função subjetiva de protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, desempenha também uma função objectiva de tutela da legalidade e do interesse público. Assim no Direito Português, o Contencioso Administrativo assume uma função predominantemente subjetiva realizada através dos sujeitos privados que actuam para a protecção dos respectivos direitos subjetivos (9/1 do CPTA) mas também desempenha uma função objectiva a qual na nossa ordem jurídica para além de resultar indirectamente da acção para defesa de direitos é realizada de forma imediata pela intervenção do autor popular (9/2 do CPTA). A Acção popular Alem disso não é um tipo especial de acção mas sim uma espécie qualificada relativa aos vários tipos de acções. Efectivamente ela pode assumir qualquer das formas e integrar qualquer dos pedidos principais previstos no CPTA. Assim podem propor-se acções administrativas comuns populares com os diversos pedidos de reconhecimento, restabelecimento de situações jurídicas, de condenação na adopção ou abstenção de comportamentos e no cumprimento de deveres, inibição da prática de acto administrativo, de indemnização por responsabilidade ou relativos a contratos. Também podem propor-se acções administrativas especiais populares sejam de impugnação de actos, pedidos de condenação à prática de acto devido ou pedidos de declaração de ilegalidade de normas. E ainda processos urgentes populares, nomeadamente de impugnações de actos ou documentos pré-contratuais e intimações para a prestação de informações. No entanto, a cada uma delas será aplicável o respectivo regime do CPTA com as necessárias adaptações.

Em concreto, para ser qualificado como autor popular, a Associação de Investidores e Analistas Técnicos, tem que defender um dos interesses tutelados pela Lei de Acção Popular (2/1 da Lei 83/95), independentemente de ter ou não interesse directo na demanda. Coloca-se então a questão de saber quais são os interesses. A lei 83/95 e ainda o artigo 9/2 do CPTA referem alguns deles: saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural, bens do Estado e das Regiões Autónomas e das autarquias locais, protecção do consumo de bens e serviços. Tendo em conta que o elenco não é taxativo, seria aqui invocável a propriedade privada (62 da CRP).

  • Acção Administrativa Especial
Quanto ao primeiro pedido: a medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal é um acto administrativo (120 do CPA) impugnável (51/2 do CPTA). A impugnação tem por objecto a sua declaração de nulidade (50/1 do CPTA). Assim o pedido de declaração de nulidade da medida de resolução traduzida na transferência de activos a favor do Novo Banco deve assumir a forma de acção administrativa especial (46/2 a) do CPTA). A acção administrativa especial é uma forma de processo principal. Seguem a sua forma os processos cujo objecto sejam pretensões emergentes da prática ou omissão legal de actos administrativos, bem como de normas que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo (46/1 do CPTA).

Quanto ao segundo pedido: a responsabilidade civil das pessoas colectivas, bem como dos titulares, dos seus órgãos, funcionários ou agentes, assume a forma de acção administrativa comum (37/2 f) do CPTA). A acção administrativa comum é também uma forma de processo principal. Seguem a sua forma os processos que tenham por objecto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da jurisdição administrativa e que, nem no CPTA nem em legislação avulsa, sejam objecto de regulação especial (37/1 do CPTA).

A cumulação destes pedidos é possível (4/2 a) 1º parte e f), 47/1 do CPTA), sendo adoptada a forma de acção administrativa especial (5/6 do CPTA). Porém e alegadamente o autor não cumulou os pedidos, pois intentou duas acções populares “autónomas”. Como refere Vieira de Andrade a cumulação pode implicar uma menor celeridade dos processos que pode prejudicar o próprio autor, nomeadamente quando dela resulte uma maior complexidade da instrução. Trata-se por isso de uma faculdade que deve ser utilizada estrategicamente pelo autor em função das suas expectativas perante as circunstâncias do caso.


  • Competência 
O litígio em causa está submetido ao âmbito da jurisdição administrativa (39 da LOBP e 4/1 b) e h) do ETAF). O Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa é competente em razão do território (22 do CPTA) e da hierarquia (44/1 do ETAF). 


  • Legitimidade
Em relação a qualquer dos pedidos em causa, a Associação de Investidores e Analistas Técnicos tem legitimidade activa, enquanto autor popular (9/2 e 55/1 f) do CPTA). Isto decorre ainda de associação ter personalidade jurídica, incluir como atribuição no seus estatutos a defesa dos interesses em causa do tipo de acção que se trate e ainda de não exercer qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais (3 da Lei 83/95). Quanto á legitimidade passiva, ela cabe ao Banco de Portugal no primeiro pedido (10/2 do CPTA), e ao Estado, Banco de Portugal e seu governador no segundo pedido (10/2 do CPTA).

  • Prazos 
Em relação ao primeiro pedido, a impugnação de actos nulos não está sujeita a prazo (58/1 do CPTA). Em relação ao segundo pedido e sem prejuízo do disposto na lei substantiva (5 da lei 67/2007), a acção administrativa comum pode ser proposta a todo o tempo (41/1 do CPTA).

  • Conclusão
Em suma, a Associação de Investidores e Analistas Técnicos pode intentar uma acção administrativa especial popular, cumulando o pedido de declaração de nulidade da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal com o pedido de indemnização.


BIBLIOGRAFIA 


ANDRADE, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa, Almedina, 2014.


AROSO DE ALMEIDA, Mário – Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014.

FÁBRICA, Luís – A acção popular no projecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2003.

PEREIRA DA SILVA, Vasco - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2013.
















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