terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Acção Administrativa Especial vs Acção Administrativa Comum



  “O primeiro aspecto prende-se com o fim do regime dualista da acção administrativa especial/acção administrativa comum, passando agora todos os processos não-urgentes do contencioso administrativo a tramitarem sob uma única forma de acção, designada como acção administrativa.”
  
  Este parágrafo integra a Exposição de motivos do Anteprojecto de reforma do Contencioso Administrativo e concluiremos a nossa exposição à luz do mesmo. Mas, em primeiro lugar, cabe analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, adiante STA, número 0517/09 de 27 de Maio de2009 segundo o regime ainda em vigor.
  Na génese da dualidade dos meios processuais não-urgentes está a ideia da Administração inteiramente autoritária, e, apesar da enorme discussão doutrinária a seu respeito, esta encontra-se hoje em vigor. Depois de chegarmos à conclusão de que a ‘verdadeira’ acção comum do contencioso administrativo é a acção administrativa especial, no acórdão supra referido o autor quis ser excepção e fazer da acção administrativa especial uma acção comum.
  Importa explicar sucintamente a situação em questão. O autor, adiante A, assessor informático principal da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, intentou acção administrativa comum contra o Tribunal de Contas, adiante B, pedindo, cumulativamente, o reconhecimento de que A preenchia todas as condições para a transição para a carreira e categoria de auditor e a adopção das condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos e interesses violados e pagamento de prestações pecuniárias.
  B contestou por excepção e impugnação, alegando que A tinha impugnado contenciosamente o acto que lhe negou a transição de carreira, recurso a que o STA negou provimento, e que pretendia, neste contexto, “reanimá-lo ilegitimamente”.
  Segundo o acórdão em análise “nada disto faz sentido”. Para facilitar a discussão presente dividiremos a análise em causa pelos dois pedidos de A.
  Relativamente ao pedido de reconhecimento, alegadamente à luz do artigo 37º, número 2, alínea b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, adiante CPTA, o STA afirma que, este pedido, à luz do artigo supra referido, pressuporia que a acção fosse de simples apreciação, o que, por sua vez, implicaria a alegação de um estado objectivo de dúvida na relação entre A e a Administração. Não se verificando nenhuma das implicações referidas, conclui pela falta de correspondência do pedido de A à previsão do artigo 37º/2/b) do CPTA.
  Bem, a este respeito, parece-nos pertinente referir a exigência de interesse processual específico, como refere o Professor Mário Aroso de Almeida. O interesse processual específico pode decorrer de três situações, grave incerteza objectiva, conveniência de pôr cobro a afirmações ilegítimas por parte da Administração ou receio de lesão futura da Administração.
  A não verificação do interesse processual resulta na inadmissibilidade da pretensão do autor. A situação presente no caso apenas poderia remeter para a verificação do interesse processual específico pela grave incerteza objectiva, no entanto, aqui não pode invocar-se qualquer dúvida, uma vez que, a Administração já negou a almejada transição, pelo que a situação era bastante clara.
  Por outro lado, Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira referem dois requisitos para intentar a acção ao abrigo do artigo 37º/2/b) do CPTA, requisitos que também têm que verificar-se na alínea a) do mesmo artigo. O primeiro é que a situação que se pretende ver reconhecida esteja definida na norma em causa, o segundo aponta para que o reconhecimento em questão não esteja sujeito a pronúncia administrativa prévia. Mais uma vez, à luz do caso em análise, o reconhecimento da transição de categoria dependia de despacho aprovado pelo Presidente do Tribunal de Contas, tal como assinalamos a seguir, assim cai por terra o segundo requisito assinalado.
  No que diz respeito à pretensão de conteúdo condenatório, segundo pedido de A, o raciocínio do STA foi o seguinte. Aqui nunca poderia estar em causa uma acção administrativa comum nos termos do artigo 37º/2/d) do CPTA, uma vez que, contrariamente ao que acontece no caso, em que ao pedido tem que anteceder, obrigatoriamente, um acto administrativo, à luz do artigo 39º do Decreto-lei 440/99, de 2 de Novembro, o artigo 37º/2/d) do CPTA visa tutelar as situações em que não é necessária a prática de qualquer acto administrativo anterior.
  Por Despacho de 21 de Junho de 2000, o Presidente do Tribunal de Contas aprovou as listas nominativas de transição de pessoal, designadamente para a carreira e categoria de auditor, não se mostrando o autor incluído, verificado o acto, a única maneira de reagir era recorrer contenciosamente do mesmo.
  Assim, A viu a sua situação definida por acto administrativo que negou a transição de categoria, recorreu contenciosamente do mesmo e o STA negou o provimento ao recurso, pelo que se manteve na Ordem Jurídica o Despacho supra citado.
  O STA acrescenta ainda que, mesmo a igualdade, a que A apela, em relação aos dois colegas, não pode ser, neste caso, alegada. Isto porque, os dois colegas recorreram contenciosamente e o STA deu provimento ao recurso, ao contrário do que aconteceu com o autor.
  Por fim, negado o provimento do pedido de condenação, o pagamento das prestações pecuniárias, a título de ‘diferenciais de retribuição e de indemnização por responsabilidade civil’, também é necessariamente negado.
  Bem, nas notas introdutórias do Manual do Professor Mário Aroso de Almeida desta matéria, lemos que o ponto comum das acções administrativas comuns de condenação é a não dependência de prévia prática de acto administrativo, que já vimos que era o caso.
  Segundo a doutrina portuguesa, a alínea d) do artigo 37º/2 do CPTA visa a “reconstituição da situação actual hipotética”, portanto, consubstancia um pedido relativo a responsabilidade civil pública, que, a nosso ver, nunca poderia estar aqui em causa por não estar aqui em questão nenhuma actuação ilegal da administração.
  Em tom de conclusão, parece-nos pertinente fazer reflexão sucinta da distinção entre acção administrativa comum e especial.
  Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, a distinção entre as duas acções é feita conforme o poder administrativo exercido. O professor aponta dois critérios distintivos, um “declarado”, de natureza processual, visto que o regime da acção administrativa comum se encontra no Código de Procedimento Administrativo e o da acção administrativa especial no CPTA, e um “oculto” ou “inconsciente”, de natureza substantiva, as actuações de poder da Administração carecem de procedimento especial, as restantes caem no âmbito da acção administrativa comum, situação que denota uma aparente delimitação por exclusão de partes.
  No caso, estávamos perante uma actuação de poder da Administração, sendo a transição efectivada por acto administrativo, o que não deixaria dúvidas quanto à necessidade de estar em causa uma acção administrativa especial. Na verdade, voltando a citar o Acórdão em destaque, o facto de A ter optado por uma acção administrativa comum, artigo 37º/2 do CPTA, em vez de acção administrativa especial, artigo 46º/2 do mesmo Código, sugere que sabia não estar em condições de vir a juízo pedir a condenação da Administração à prática do acto legalmente devido.
  Se não restam dúvidas quanto à decisão proferida pelo STA, interrogamo-nos como será analisado este caso à luz do novo regime do CPTA, que ainda não entrou em vigor. Remetendo para o início desta exposição, uma das fundamentais alterações do novo regime é, precisamente, a unificação da acção administrativa comum e acção administrativa especial nos processos não-urgentes.
  O Professor Sérvulo Correia diz, a este respeito, que nos encontramos perante uma “transição de um modelo de bipolaridade imperfeita para outro, caracterizado como de unipolaridade atenuada”. Atenuada porque a especificidade mantem-se mas agora com o nome “excepções”, concluindo pela inexistência de um tratamento normativo único.
  O artigo 37º do CPTA, tão referido no acórdão, relativo ao objecto da acção administrativa comum, versa, no futuro, o objecto da ‘acção administrativa’. O professor, continua, referindo ainda que, a pretensão de instaurar um meio processual principal único nos processos não-urgentes é utópica, o que fica demonstrado pelas normas das ‘Disposições particulares’ no Título II do Capítulo II, do anteprojecto de revisão do CPTA.
  Por fim, conclui que “após dez anos de aplicação do CPTA, ganhou-se a experiência e a profundidade de visão suficientes para o estabelecimento de uma única acção principal não urgente.”
  Cabe tomar posição, não nos parece que o desaparecimento da dicotomia de acções traga problemas de maior a situações como a analisada no Acórdão do STA 0517/09. Na verdade, o mesmo nome não implica a aplicação do mesmo regime, tal como sugere o Professor Sérvulo Correia. Claro que a discussão do Acórdão já não seria realizada nos mesmos termos, mas não nos parece que o caso discutido mudasse de rumo, na verdade, o autor pretendia aqui que o STA tutelasse uma situação em relação à qual já tinha tomado posição, mas com outra denominação. Com a alteração do CPTA a discussão deixa de ser entre o artigo 37º e 46º e passa a residir no mesmo artigo.






Bibliografia:
1.      Ac. do STA, 0517/09, de 27 de Maio de 2009
2.      ALMEIDA, Mário Aroso, Comentário ao Código de Procedimento Administrativo, pág. 177
3.      ALMEIDA, Mário Aroso, Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Almedina, pág. 470 e ss.
4.      ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010
5.      CORREIA, José Manuel Sérvulo, Da Acção Administrativa Especial à Nova Acção Administrativa, Justiça Administrativa nº 106, Julho/Agosto 2014
6.      OLIVEIRA, Mário e Rodrigo Esteves, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Coimbra,2004, pág. 268 e ss.
7.      SILVA, Vasco Pereira, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, pág. 437 e ss.



Rita Rosário, 20783

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