“O primeiro aspecto prende-se com o fim do
regime dualista da acção administrativa especial/acção administrativa comum,
passando agora todos os processos não-urgentes do contencioso administrativo a
tramitarem sob uma única forma de acção, designada como acção administrativa.”
Este parágrafo integra a Exposição de motivos do Anteprojecto de reforma do Contencioso Administrativo e concluiremos a nossa exposição à luz do mesmo. Mas, em primeiro lugar, cabe analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, adiante STA, número 0517/09 de 27 de Maio de2009 segundo o regime ainda em vigor.
Na génese da
dualidade dos meios processuais não-urgentes está a ideia da Administração
inteiramente autoritária, e, apesar da enorme discussão doutrinária a seu
respeito, esta encontra-se hoje em vigor. Depois de chegarmos à conclusão de
que a ‘verdadeira’ acção comum do contencioso administrativo é a acção
administrativa especial, no acórdão supra referido o autor quis ser excepção e
fazer da acção administrativa especial uma acção comum.
Importa explicar
sucintamente a situação em questão. O autor, adiante A, assessor informático
principal da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, intentou acção
administrativa comum contra o Tribunal de Contas, adiante B, pedindo,
cumulativamente, o reconhecimento de que A preenchia todas as condições para a transição
para a carreira e categoria de auditor e a adopção das condutas necessárias ao
restabelecimento dos direitos e interesses violados e pagamento de prestações
pecuniárias.
B contestou por
excepção e impugnação, alegando que A tinha impugnado contenciosamente o acto
que lhe negou a transição de carreira, recurso a que o STA negou provimento, e
que pretendia, neste contexto, “reanimá-lo ilegitimamente”.
Segundo o acórdão em
análise “nada disto faz sentido”. Para facilitar a discussão presente
dividiremos a análise em causa pelos dois pedidos de A.
Relativamente ao pedido
de reconhecimento, alegadamente à luz do artigo 37º, número 2, alínea b) do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, adiante CPTA, o STA afirma
que, este pedido, à luz do artigo supra referido, pressuporia que a acção fosse
de simples apreciação, o que, por sua vez, implicaria a alegação de um estado
objectivo de dúvida na relação entre A e a Administração. Não se verificando
nenhuma das implicações referidas, conclui pela falta de correspondência do
pedido de A à previsão do artigo 37º/2/b) do CPTA.
Bem, a este respeito,
parece-nos pertinente referir a exigência de interesse processual específico,
como refere o Professor Mário Aroso de Almeida. O interesse processual
específico pode decorrer de três situações, grave incerteza objectiva,
conveniência de pôr cobro a afirmações ilegítimas por parte da Administração ou
receio de lesão futura da Administração.
A não verificação do
interesse processual resulta na inadmissibilidade da pretensão do autor. A situação
presente no caso apenas poderia remeter para a verificação do interesse
processual específico pela grave incerteza objectiva, no entanto, aqui não pode
invocar-se qualquer dúvida, uma vez que, a Administração já negou a almejada
transição, pelo que a situação era bastante clara.
Por outro lado, Mário
e Rodrigo Esteves de Oliveira referem dois requisitos para intentar a acção ao abrigo
do artigo 37º/2/b) do CPTA, requisitos que também têm que verificar-se na
alínea a) do mesmo artigo. O primeiro é que a situação que se pretende ver
reconhecida esteja definida na norma em causa, o segundo aponta para que o
reconhecimento em questão não esteja sujeito a pronúncia administrativa prévia.
Mais uma vez, à luz do caso em análise, o reconhecimento da transição de
categoria dependia de despacho aprovado pelo Presidente do Tribunal de Contas,
tal como assinalamos a seguir, assim cai por terra o segundo requisito
assinalado.
No que diz respeito à
pretensão de conteúdo condenatório, segundo pedido de A, o raciocínio do STA
foi o seguinte. Aqui nunca poderia estar em causa uma acção administrativa comum
nos termos do artigo 37º/2/d) do CPTA, uma vez que, contrariamente ao que acontece
no caso, em que ao pedido tem que anteceder, obrigatoriamente, um acto
administrativo, à luz do artigo 39º do Decreto-lei 440/99, de 2 de Novembro, o
artigo 37º/2/d) do CPTA visa tutelar as situações em que não é necessária a
prática de qualquer acto administrativo anterior.
Por Despacho de 21 de
Junho de 2000, o Presidente do Tribunal de Contas aprovou as listas nominativas
de transição de pessoal, designadamente para a carreira e categoria de auditor,
não se mostrando o autor incluído, verificado o acto, a única maneira de reagir
era recorrer contenciosamente do mesmo.
Assim, A viu a sua
situação definida por acto administrativo que negou a transição de categoria,
recorreu contenciosamente do mesmo e o STA negou o provimento ao recurso, pelo
que se manteve na Ordem Jurídica o Despacho supra citado.
O STA acrescenta
ainda que, mesmo a igualdade, a que A apela, em relação aos dois colegas, não
pode ser, neste caso, alegada. Isto porque, os dois colegas recorreram
contenciosamente e o STA deu provimento ao recurso, ao contrário do que aconteceu
com o autor.
Por fim, negado o
provimento do pedido de condenação, o pagamento das prestações pecuniárias, a
título de ‘diferenciais de retribuição e de indemnização por responsabilidade
civil’, também é necessariamente negado.
Bem, nas notas
introdutórias do Manual do Professor Mário Aroso de Almeida desta matéria,
lemos que o ponto comum das acções administrativas comuns de condenação é a não
dependência de prévia prática de acto administrativo, que já vimos que era o
caso.
Segundo a doutrina
portuguesa, a alínea d) do artigo 37º/2 do CPTA visa a “reconstituição da
situação actual hipotética”, portanto, consubstancia um pedido relativo a
responsabilidade civil pública, que, a nosso ver, nunca poderia estar aqui em
causa por não estar aqui em questão nenhuma actuação ilegal da administração.
Em tom de conclusão,
parece-nos pertinente fazer reflexão sucinta da distinção entre acção
administrativa comum e especial.
Segundo o Professor
Vasco Pereira da Silva, a distinção entre as duas acções é feita conforme o
poder administrativo exercido. O professor aponta dois critérios distintivos,
um “declarado”, de natureza processual, visto que o regime da acção
administrativa comum se encontra no Código de Procedimento Administrativo e o
da acção administrativa especial no CPTA, e um “oculto” ou “inconsciente”, de
natureza substantiva, as actuações de poder da Administração carecem de
procedimento especial, as restantes caem no âmbito da acção administrativa
comum, situação que denota uma aparente delimitação por exclusão de partes.
No caso, estávamos
perante uma actuação de poder da Administração, sendo a transição efectivada
por acto administrativo, o que não deixaria dúvidas quanto à necessidade de
estar em causa uma acção administrativa especial. Na verdade, voltando a citar
o Acórdão em destaque, o facto de A ter optado por uma acção administrativa
comum, artigo 37º/2 do CPTA, em vez de acção administrativa especial, artigo
46º/2 do mesmo Código, sugere que sabia não estar em condições de vir a juízo
pedir a condenação da Administração à prática do acto legalmente devido.
Se não restam dúvidas
quanto à decisão proferida pelo STA, interrogamo-nos como será analisado este
caso à luz do novo regime do CPTA, que ainda não entrou em vigor. Remetendo
para o início desta exposição, uma das fundamentais alterações do novo regime é,
precisamente, a unificação da acção administrativa comum e acção administrativa
especial nos processos não-urgentes.
O Professor Sérvulo
Correia diz, a este respeito, que nos encontramos perante uma “transição de um
modelo de bipolaridade imperfeita para outro, caracterizado como de
unipolaridade atenuada”. Atenuada porque a especificidade mantem-se mas agora
com o nome “excepções”, concluindo pela inexistência de um tratamento normativo
único.
O artigo 37º do CPTA,
tão referido no acórdão, relativo ao objecto da acção administrativa comum,
versa, no futuro, o objecto da ‘acção administrativa’. O professor, continua,
referindo ainda que, a pretensão de instaurar um meio processual principal
único nos processos não-urgentes é utópica, o que fica demonstrado pelas normas
das ‘Disposições particulares’ no Título II do Capítulo II, do anteprojecto de
revisão do CPTA.
Por fim, conclui que
“após dez anos de aplicação do CPTA, ganhou-se a experiência e a profundidade
de visão suficientes para o estabelecimento de uma única acção principal não
urgente.”
Cabe tomar posição,
não nos parece que o desaparecimento da dicotomia de acções traga problemas de
maior a situações como a analisada no Acórdão do STA 0517/09. Na verdade, o
mesmo nome não implica a aplicação do mesmo regime, tal como sugere o Professor
Sérvulo Correia. Claro que a discussão do Acórdão já não seria realizada nos
mesmos termos, mas não nos parece que o caso discutido mudasse de rumo, na
verdade, o autor pretendia aqui que o STA tutelasse uma situação em relação à
qual já tinha tomado posição, mas com outra denominação. Com a alteração do
CPTA a discussão deixa de ser entre o artigo 37º e 46º e passa a residir no
mesmo artigo.
Bibliografia:
1.
Ac.
do STA, 0517/09, de 27 de Maio de 2009
2.
ALMEIDA,
Mário Aroso, Comentário ao Código de
Procedimento Administrativo, pág. 177
3.
ALMEIDA,
Mário Aroso, Anulação de Actos
Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Almedina, pág. 470 e ss.
4.
ALMEIDA,
Mário Aroso, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, 2010
5.
CORREIA,
José Manuel Sérvulo, Da Acção
Administrativa Especial à Nova Acção Administrativa, Justiça Administrativa
nº 106, Julho/Agosto 2014
6.
OLIVEIRA,
Mário e Rodrigo Esteves, Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, Coimbra,2004, pág. 268 e ss.
7.
SILVA,
Vasco Pereira, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, pág. 437 e ss.
Rita Rosário, 20783
Visto.
ResponderEliminar