domingo, 7 de dezembro de 2014

O regime do contencioso pré-contratual em sede de processo urgente

O contencioso pré contratual, apresenta-se perante o ordenamento jurídico português como a designação dada aos meios de impugnação contenciosa dos procedimentos que visam a celebração de contratos, em sede de Direito Administrativo, ou seja, representa o conjunto de garantias jurisdicionais de tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares face a actos administrativos e normas conformadoras dos procedimentos de formação dos contratos públicos que lesem os supracitados interesses/direitos. Verifica-se que os procedimentos pré-contratuais apresentam-se como objecto de especial atenção por parte dos interessados em serem adjudicados ao contrato e aos concorrentes a nível de concurso público, por exemplo. Sendo estes sujeitos os principais interessados, é-lhes conferido o direito potestativo à celebração do contrato. Os procedimentos pré-contratuais permitem à Administração Pública escolher o sujeito passível de ser contratado, através da limitação de critérios como a prossecução do interesse público e perante o Contencioso Administrativo, enquanto processo urgente apresentam um regime essencialmente célere a par da especial incidência que conferem à expurgação dos vícios em cada fase do procedimento. Estas questões justificam a actual existência de uma tutela cautelar própria, conferida através de medidas preventivas caracterizadas essencialmente pela celeridade, de forma a serem realizadas entre a adjudicação e a celebração do contrato, visando portanto e acima de tudo, o impedimento à execução do respectivo contrato).

De forma a analisar toda a estrutura que rodeia o contencioso pré-contratual presente no CPTA, será necessário, a título primeiro, proceder a uma breve explicação histórica deste instituto, visando o esclarecimento do regime que nos é apresentado perante o actual CPTA. Com efeito, verifica-se que anteriormente à existência do CPTA, o contencioso administrativo era um regime de matriz meramente cassatória, pelo que aos Tribunais Administrativos eram atribuídos poderes de pronúncia sobre um juízo de legalidade. Perante este sistema, o recurso contencioso de anulação era tido como o meio processual primacial, perante o qual o contencioso pré-contratual não tinha qualquer autonomia processual, na medida em que a tutela jurisdicional era meramente assegurada pelo recurso contencioso de anulação e pela impugnação de normas. Perante este sistema, verifica-se portanto que não era possível estabelecer uma real separação entre o âmbito do contencioso pré-contratual (não era possível delimitar a fronteira entre o acto recorrível ser considerado um acto administrativo lesivo no âmbito do procedimento para a formação de contratos ou o acto recorrível ser considerado uma norma ilegal das disposições dos documentos conformadores do contrato.

Porém, a partir das chamadas “Directivas Recursos”, verifica-se uma mudança de paradigma, no sentido em que estas impuseram aos Estados Membros a adopção de medidas necessárias a corrigir a ilegalidade resultante da violação do Direito da União Europeia ou do Direito Nacional que não se apresentava como suficientemente diligente na transposição das Directivas Comunitárias. A partir das supracitadas Directivas, foi imposto aos Estados a concretização de uma tutela jurisdicional não só a nível de anulação dos actos ilegais mas também um regime de impedimento dos efeitos lesivos dos actos ilegais para os particulares. A partir do DL 134/98, destaca-se portanto três grandes novidades em relação ao regime até então previsto. Essas novidades prendem-se essencialmente com a  introdução forma de processo urgente, obedecendo tal forma a uma tramitação própria que garantisse mais celeridade e eficiência processual, a consagração de medidas cautelares de forma a evitar a produção de efeitos lesivos para os particulares e a consagração de garantias de carácter administrativo (através da Intervenção da Comissão Europeia em relação à matéria introduzida pelas Directivas Recursos). Verifica-se portanto, a consagração de um processo urgente com um curto prazo de impugnação (15 dias, embora posteriormente fosse alargado para um mês) e com uma marcha processual caracterizada essencialmente pela celeridade e acompanhada da possibilidade dos particulares requererem a adopção de medidas que evitem que o acto ilegal produza efeitos lesivos, confirmando portanto o modelo subjectivo em sede de Contencioso, que visa a protecção dos particulares, especificamente perante o regime procedimental pré-contratual. Com a introdução da Lei 4-A/2003, a qual permitiu uma transposição quase total e um alargado cumprimento das Directivas Recursos, o legislador aperfeiçoou o âmbito de aplicação objectiva, alargando também o leque de normas impugnáveis. Verifica-se portanto o desaparecimento do sistema dualista presente no regime da impugnação de actos provenientes de procedimentos pré-contratuais e no regime geral de impugnação de normas que regulavam os respectivos procedimentos pré-contratuais. É notória também, perante a Lei 4-A/2003, uma expansão do âmbito subjectivo do contencioso pré-contratual, especificamente no que toca à legitimidade passiva, alargando-se o presente âmbito em relação aos sujeitos passivos de Direito Privado, no âmbito de procedimentos pré-contratuais regulados por normas de Direito Público.

Analisada a perspectiva histórica relativa ao contencioso pré-contratual, chegamos ao actual regime presente no CPTA. O processo urgente, dito impugnatório, apresenta-se como uma inovação do Contencioso Administrativo. Tal processo visa portanto obter uma decisão de mérito num menor espaço de tempo, atendendo aos prováveis danos que a morosidade no processo irá criar perante o Autor do mesmo. No CPTA, os processos urgentes distinguem-se das medidas cautelares na medida em que pretendem obter uma decisão de mérito sobre o(s) pedido(s) em causa, podendo em última instância serem articulados com uma providência cautelar (a qual está sempre dependente de uma posterior acção principal). Numa perspectiva doutrinária, verifica-se que o Professor MÁRIO AROSO ALMEIDA, atribui aos processos urgentes uma tramitação bem específica, procedendo à sua delimitação positiva e negativa. A sua delimitação negativa é tida através do artigo 46º/3 CPTA, pelo que os processos urgentes são excluídos do âmbito das Acções Administrativas Especiais (AAE) por remissão para o artigo 100º/1 CPTA. Em relação à delimitação positiva, retira-se a mesma do artigo 100º/1 CPTA, na medida em que só os procedimentos para a formação de contratos previstos no supracitado artigo estão sujeitos ao regime do contencioso pré-contratual.  

Perante a delimitação positiva e negativa dos processos urgente em causa, e aproveitando a referência às AAE, cumpre neste ponto analisar a problemática que se coloca no seio do contencioso pré-contratual e a dicotomia entre as Acções Administrativas Comuns (AAC) e Acções Administrativas Especiais (AAE). Com efeito, o contencioso pré-contratual aproxima-se mais do regime das AAE (afere-se isso mesmo através dos artigos 37º, 46º e 100º CPTA) sem prejuízo de alguns aspectos presentes da secção II do título IV assemelharem-se ao regime das AAC (sobretudo em sede de acções sobre contratos e no que toca à tutela indemnizatória). Sendo assim, e através da aplicação do artigo 46º CPTA, afere-se que é permitido aos particulares formular os seguintes pedidos: i)anulação de acto administrativo ou declaração de nulidade; ii) condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido; iii) declaração de ilegalidade de uma norma emitida ao abrigo de disposições de Direito Administrativo/ Comunitário; iv)declaração de ilegalidade de não emanação de normas que devessem ser remetidas ao abrigo de disposições de Direito Administrativo/ Comunitário; Será necessário porém ressalvar que os supracitados pedidos ficam sujeitos às normas e actos previstos no artigo 100º/1 CPTA.

Dentro do artigo 100º/1 CPTA, é possível encontrar um leque de contratos (empreitada e concessão de obras públicas, prestação de serviços  e de fornecimento de bens). Coloca-se porém a questão de saber se os contratos previstos no artigo baseiam-se numa regra de taxatividade ou se por outro lado é possível incluir outros contratos. Esta situação coloca-se especificamente perante a questão da aplicabilidade aos contratos de concessão de serviços. Encontramos uma posição favorável à respectiva aplicabilidade perante o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de Setembro de 2003, pelo que tal posição é justificada através de uma interpretação extensiva da expressão “concessão”. Porém, o Professor VIEIRA D’ANDRADE e o Professor MÁRIO AROSO ALMEIDA, repudiam tal decisão, através da defesa de uma interpretação literal do artigo 100º/1 CPTA. Assim sendo, e embora os contratos de concessão de serviços estejam abrangidos pelo Código dos Contratos Públicos, através da Transposição das Directivas Recursos, verificamos que embora existe uma previsão a nível material relativamente à concessão de serviços, não se verifica semelhante regime a título processual, na medida em que as supracitadas Directivas não permitem que estes tipos de contratos sejam impugnados a título contencioso. É de sufragar portanto, a opinião dos Doutos Professores supra referidos e atender a uma interpretação literal do artigo 100º/1 CPTA, no que toca ao conjunto de contratos a que se poderá aplicar o contencioso pré-contratual.

Perante as questões já debatidas, importa só, a título final, referir a questão dos prazos de impugnação e a regra de imperatividade do regime do contencioso pré-contratual presente nos artigos 100º e 101º CPTA. Com efeito, o regime do contencioso pré-contratual está vinculado a um sistema imperativo e não alternativo, especificamente no que toca aos prazos de impugnação. Sendo assim, esgotados os meios relativos ao processo urgente, não é possível ao particular seguir o modelo presente numa AAE ou mesmo AAC, no sentido de lhe ser alargado os prazos. O regime presente no artigo 100º e seguintes é imperativo pois findo o prazo previsto de um mês, o acto torna-se inimpugnável. Tal regra justifica-se através de um sistema que visa aproximar o princípio da economia e o da eficiência processual. Com efeito, o processo urgente visa a celeridade de forma a impedir pelo particular afastado pela Administração Pública, a execução do contrato celebrado. Sendo assim, o processo urgente é necessário devido à celeridade aplicada ao caso, em termos de prazo de impugnação e de decisão de mérito. Não se aceita portanto um alargamento de prazo, visto que a solução que se quer alcançar perante a impugnação advenientes dos procedimentos pré-contratuais, é o impedimento à celebração do contrato, de per se. Em relação ao artigo 40º CPTA, é possível questionar se os particulares poderão propor uma acção sobre o contrato, não tendo impugnado a título prévio, o procedimento pré-contratual. O Professor MÁRIO AROSO ALMEIDA repudia esta solução, justificando que o alargamento da esfera de legitimidade activa presentes nas acções sobre contratos permitiria a existência de uma “válvula de escape” perante a ausência de impugnação do procedimento pré-contratual. Nós tendemos a concordar com o Douto Professor, no sentido em que se sendo o regime do contencioso pré-contratual imperativo, não faz sentido no que toca às acções sobre contratos uma via alternativa de impugnação, pelo que será possível unicamente o esgotamento dos meios processuais em sede de processo urgente.

BIBLIOGRAFIA

Almeida, Mário Aroso - Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 2002


Andrade, José Carlos Vieira de  - A Justiça Administrativa, Coimbra Editora, 7ª Edição, Coimbra, 2005

Dias, Paulo Linhares - O contencioso pré-contratual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=64444&ida=64451
Oliveira, Rodrigo Esteves, http://www.vda.pt/xms/files/Publicacoes/O_Contencioso_urgente_da_contratacao_publica_.pdf


Miriam Almeida Alves, nº21905


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