domingo, 7 de dezembro de 2014

O conceito de ato administrativo enquanto critério de distinção entre as ações de prestação e as ações de condenação à prática do ato devido

1.         Segundo o princípio da decisão, previsto no artigo 9.º n.º 1 do CPA, e do artigo 286.º n.º4 da CRP que consagra o princípio da tutela efetiva dos direitos dos particulares, os órgãos da Administração têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência e que lhe sejam apresentados por particulares em defesa dos seus direitos subjetivos.
A Administração pode responder deferindo o requerimento, sendo esta decisão um ato de conteúdo positivo. O que muitas vezes ocorre é a situação de incumprimento do dever de decidir, do qual resulta, tal como o artigo 66.º n.º 1 do CPTA indica, a ilegal omissão ou recusa de um ato administrativo, ou seja, atos de conteúdo negativo.

2.         A distinção entre atos de conteúdo positivo e atos de conteúdo negativo passa por saber se a decisão (ato) em causa altera, de alguma forma, o statu quo da situação, ou seja, se houve impacto sobre o estado da situação, modificando a realidade, ou não. Um ato de conteúdo positivo como um deferimento altera a situação pois, por exemplo, se um particular pediu uma licença de construção, e ela lhe foi concedida, o particular vai passar de uma situação em que não pode construir, para um situação em que isso já é uma possibilidade. Por outro lado, perante um ato negativo como uma omissão administrativa, a situação do particular mantém-se igual. Caso mais peculiar é o do indeferimento. Aí estamos perante uma decisão, mas não se pode impugnar porque a situação do particular permanece tal como estava (usando o exemplo acima dado, o interessado continua sem poder construir). O indeferimento, apesar de ser uma ação, deve ser entendido como um ato de conteúdo negativo, na medida em que constitui um não deferimento da pretensão do interessado, e, portanto, essa pretensão não foi atendida. Portanto apesar de operar efeitos de consolidação jurídica, recusa  a produção dos efeitos jurídicos pretendidos. Assim, perante uma situação de indeferimento expresso, deve propor-se uma ação de condenação à prática do ato devido (pretensão do interessado) e através desta ação será necessariamente eliminado aquele indeferimento.
É por isto que perante um ato de indeferimento expresso se deve propor ação de condenação ao ato devido, visto que o ato de indeferimento será, por esta via, erradicado assim que a pretensão do interessado seja atendida.

3.         O artigo 67.º n.º 1 do CPTA elenca os pressupostos necessários para que se possa propor uma ação administrativa especial de condenação à prática do ato devido. Assim, a ação de condenação pode ser pedida quando a) a Administração não profira decisão, b) recuse a prática de um ato devido ou c) recuse a apreciação de um determinado requerimento dirigido à prática de um ato.
O pressuposto descrito no artigo 67.º n.º1 alínea a) é a situação em que a Administração, passado o prazo legal para decidir sobre a pretensão formulada pelo interessado, nada faz. Antes da consagração da ação de condenação ao ato devido, existia a figura do indeferimento tácito, que era outro meio processual para agir quanto a situações de inércia. Passado o prazo para decidir, ficcionava-se um ato de indeferimento de forma a permitir ao interessado impugnar contenciosamente aquela situação. O CPTA eliminou este ato de indeferimento mediante derrogação do artigo 109.º n.º 1 do CPA, sendo agora permitido ao particular obrigar a Administração a decidir, não sendo necessário o recurso a uma ficção legal de indeferimento.
A alínea b) do artigo 67.º n.º 1 trata da situação em que existe a prática de um ato, mas esse ato é um ato de recusa. Está aqui em causa um indeferimento de mérito em que a Administração decidiu desfavoravelmente face à pretensão deduzida pelo interessado. Esta recusa pode ser a recusa da prática de um ato de conteúdo vinculado ou mesmo o preenchimento de conceitos indeterminados.
A terceira situação descrita na alínea c) do artigo 67.º n.º1 do CPTA é aquela em que a Administração se recusa a pronunciar-se sobre o objeto do requerimento.
O essencial é que o requerimento tenha constituído a Administração num dever de agir e não o tenha feito. Assim, perante um ato de conteúdo negativo, o interessado poderá propor ação de condenação à prática do ato devido, sendo ato “devido” aquele que, de acordo com o interessado, deveria ter sido emitido pelo Administração mas não foi.

4.         O particular pode, também, propor uma ação administrativa comum de condenação da Administração à prática de um determinado dever de prestar, nos termos do artigo 37.º n.º 2 alínea e). Esta ação de prestação pode ter por objeto o pagamento de quantias, a entrega de coisas ou a prestação de factos. Para que o particular possa propor esta ação de prestar é necessária a existência de uma vinculação por parte da Administração aos deveres de prestar, e que essa vinculação resulte de uma norma ou ato administrativo anterior. Portanto pressuposto essencial é que a obrigação da Administração esteja já definida por ato jurídico anterior. Assim, na falta de cumprimento, estaremos apenas perante uma recusa de atuação.

5. A distinção entre a ação administrativa especial de condenação da Administração ao ato devido e o ato administrativo comum de condenação à pratica de prestações devidas passa pelo conceito de ato administrativo.
José Vieira de Andrade desdobra o conceito de ato administrativo em conceito substantivo e conceito adjetivo. O conceito substantivo de ato administrativo é-nos fornecido pelo artigo 120.º do CPA, e que se traduz em todas as “decisões dos órgãos da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. Já o conceito adjetivo surge no artigo 51.º enquanto ato administrativo impugnável, sendo portanto aquele que produz eficácia externa, ainda que inserido num procedimento, e que seja capaz de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.
Definido o conceito, cabe analisar os dois tipos de ação e verificar se estamos perante atos administrativos ou não, visto que a sua presença, ou não, tem implicações diferentes consoante se trate da ação comum de prestar ou a ação especial de condenação.
No ato de condenação à prática do ato devido, estamos perante uma situação em que i) houve total inércia da Administração, não tendo sido analisado o requerimento, ii) houve um indeferimento expresso ou iii) uma recusa de apreciação. No caso de omissão administrativa e recusa de apreciação, não há dúvidas de que estamos perante um ato administrativo.
O caso que se afigura mais complicado, é o caso de indeferimento do artigo 67.º n.º1 alínea b). Ora neste caso estamos perante um ato negativo expresso. Este ato é uma decisão de um órgão da Administração, tomada ao abrigo de normas de direito público e que produz efeitos numa situação individual e concreta. No entanto duvida-se que o indeferimento tenha a força decisória de um ato administrativo, visto que estamos aqui perante uma verdadeira recusa da prática do ato devido. Portanto o indeferimento, embora seja uma ação, equivale, da perspetiva da esfera jurídica do particular, a uma “não ação”, na medida em que a sua pretensão não foi atendida. José Vieira de Andrade é da opinião de que se deve adotar um conceito estrito de ato administrativo. Esse conceito estrito,    que corresponde a uma estatuição de autoridade, produzida por um órgão administrativo, que visa definir estavelmente a situação jurídica dos particulares num caso concreto e com efeitos externos, permite-nos, assim,  aceitar o indeferimento enquanto verdadeiro ato administrativo.

6.         Na ação administrativa comum de condenação da Administração à prática de uma determinada prestação prevista no artigo 37.º n.º 2 alínea e), também temos de ver se o ato de prestar é ou não um ato administrativo. Isto porque o seu pressuposto de aplicação é que a prestação não seja um ato administrativo, mas sim uma obrigação definida por um ato administrativo prévio.
Como vimos a ação de prestação dirige-se ao cumprimento de deveres obrigacionais que normalmente são exigíveis no âmbito da administração de prestações, tais como o pagamento de remunerações, de pensões e benefícios da Segurança Social e prestações de cuidados de saúde ou educação.
Esta ação administrativa comum de condenação da Administração a prestar tem como pressuposto necessário que a obrigação esteja previamente definida por um ato jurídico anterior ou por uma norma imediatamente operativa. Assim, caso a Administração não realize a prestação, esse ato deve ser entendido como uma mera atuação material de recusa.
Enquanto as prestações decorram, com clareza, de atos administrativos prévios, não se colocam problemas. Por exemplo, existir um Despacho que determina o pagamento de 400€ a título de reforma. Podem, no entanto, surgir situações controversas quando, partindo do mesmo exemplo, o âmbito de aplicação não seja claro e haja necessidade de determinar quem beneficia da pensão; ou então ser necessário posterior ajustamento no cálculo das pensões. Nesses casos, havendo necessidade de um ato administrativo, pode tornar-se mais difícil o enquadramento da situação como sendo um ato sujeito a ação comum ou ação especial.
Para que se possa autonomizar esta figura face à ação de condenação, tem sido adotado um conceito restrito de ato administrativo passando a entender-se como “decisão” ou “ato regulador”. Assim, o conceito de ato administrativo permite distinguir entre uma ação administrativa comum de condenação a prestar e uma ação administrativa especial de condenação à prática do ato devido.

O ato administrativo funciona, assim, como a pedra de toque da delimitação do campo de aplicação destes dois tipos de ação. As implicações práticas são muito relevantes e é fulcral fazer bem a distinção visto que as consequências, em termos de prazo para a propositura das ações, podem fazer toda a diferença para o particular, visto que a ação administrativa comum pode ser proposta a todo o tempo (artigo 41.º n.º 1 do CPTA), enquanto que a ação especial prevê o prazo máximo de um ano (artigo 69.º do CPTA). 

Bibliografia

Carlos Alberto Fernandes CadilhaDicionário de contencioso administrativo, Coimbra, Almedina, 2006, p. 25 e ss.

José Carlos Vieira de AndradeA ação de condenação à prática de ato devido, A reforma da justiça administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p.169 e ss.

José Carlos Vieira de AndradeLições de Direito Administrativo, 2ª edição, Coimbra, 2009, p. 129 e ss.

José Carlos Vieira de AndradeA Justiça administrativa (Lições), 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, p. 209 e ss.

Mário Aroso de AlmeidaComentário ao código de processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2005, p.171 e ss.

Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, Coimbra, Almedina, 2005, p. 189 e ss.

Mário Aroso de AlmeidaManual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2010, p. 316

Vasco Pereira da SilvaO Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p. 377 e ss. 








1 comentário:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.