domingo, 7 de dezembro de 2014

Condenação à prática de acto administrativo devido

Para melhor desenvolvimento do tema, é necessário esclarecer o que se entende por “condenação para a prática de acto devido”.
Actualmente, e ao contrário do que sucedia noutros tempos em que a relação dos particulares com a Administração se baseava em escassos contactos e em que esta assumia um papel inteventivo reduzido, verificamos uma maior dependência dos cidadãos à actuação da Administração, e têm a apoiá-los um conjunto de direitos que lhes oferece uma posição jurídica em crescimento, e que igualmente alimenta o número e a qualidade dos deveres da entidade pública para com eles. Muitas vezes se verifica que os cidadãos são prejudicados devido ao silêncio ou “arrogância”, ou através da recusa na satisfação dos direitos, por parte da Administração, comportamentos de uma Administração de Limitação, quando deveria ser uma Administração Prestadora. A tradição sempre foi o contencioso de anulação e nunca o contencioso de plena jurisdição. Daí surgiu a necessidade da criação desta figura, uma vez que o recurso de anulação não basta para satisfazer os ânimos decorrentes dos direitos dos cidadãos, e por isso havia que pensar numa solução que obrigasse a Administração a alterar os seus comportamentos, dando resposta efectiva à concretização dos direitos por leis aos cidadãos. Assim surge a figura da condenação à prática de acto administrativo legalmente devido, permitindo a protecção jurídica do particular que tem um direito ou um interesse legalmente protegido à emissão de um acto administrativo, quando a Administração Pública recusa expressamente ou permanece em silêncio, sendo comportamentos contrários à actuação pretendida pela lei. Assim, ao permitir-se condenar a AP a emitir um acto administrativo devido, garante-se a efectividade dos direitos dos particulares, visto estabelecer-se expressamente que a entidade pública está obrigada a agir e qual o conteúdo dessa actuação[1]. Daí resulta um importante contributo para uma melhor administração, já que incentiva a uma reflexão cuidada na ponderação de interesses que a Administração tem de proceder no desempenho da sua actividade.
Deste modo, e como foi referido anteriormente, esta prática surgiu como reflexo de uma Administração Prestadora, fruto da chegada do Estado Social, passando a ser interventiva e que salvaguarda as pretensões dos particulares, tendo passado o contencioso administrativo a centrar-se nos direitos dos particulares e não no acto administrativo.

Após esta breve demonstração de como este tipo de acção foi benéfico, com a reforma de 2002/2004, para o contencioso administrativo português, cabe agora enunciar e explicitar o seu regime, que consta dos artigos 66º e ss do CPTA.
Começarei pela forma do pedido da acção administrativa especial. No momento do debate público (no seio da Comissão Eventual de Revisão da Constituição para a revisão de 1997), discutiu-se se a condenação à prática de acto administrativo devido deveria ou não constituir um tipo independente de acção: deveria ser obtida através do recurso de anulação ou deveria criar-se uma forma de acção própria e autónoma? A opção do legislador foi sim a de compreender o pedido na acção administrativa especial, devido à existência de elementos comuns aos pedidos deste tipo de acção, mais precisamente elementos concretos que envolvem a relação jurídica entre os particulares e o ente público, como podemos retirar do art. 46º, nº1 parte final, do CPTA à numa condenação à prática de acto administrativo devido é clara a presença de um acto administrativo que é necessário para a concretização do direito ou interesse legalmente protegido, logo a sua incorporação neste tipo de acção encontra-se justificado, deixando para a acção administrativa comum todas as outras condenações da Administração que não envolvam a prática de um acto jurídico mas antes o exercício de uma determinada tarefa (art.66º nº1 do CPTA).
Outra questão importante diz respeito ao objecto do processo, presente no art.66º/2 do CPTA. Analisando esta norma, verifica-se que resultam três conclusões que convém reter:
- o objecto do processo é a pretensão do interessado à quando o particular se dirige ao tribunal, o que pretende é que este orgão reconheça a existência do seu direito ou interesse legalmente protegido à emissão de um acto administrativo inserido na sua esfera jurídica e que, através desse reconhecimento, obrigue a Administração a praticar o acto. Assim, e de acordo com a opinião do Prof. Mário Aroso de Almeida, conclui-se que o objecto do pedido de condenação é o reconhecimento de direitos ou interesses que se dirigem à emissão de acto administrativo. Também no art. 71º se determina que, quando chamado a condenar a Administração a praticar um acto devido, o tribunal não se pode limitar a devolver a questão ao órgão administrativo competente mas antes se deve pronunciar “sobre a pretensão material do interessado”. O processo de condenação é um proceso em que o autor faz valer a posição subjectiva de conteúdo pretensivo de que é titular, pedindo o seu reconhecimento e dela fazendo o objecto do processo. Uma consequência de o objecto do processo ser definido deste modo é a de que ele não cristaliza no tempo, por referência ao momento em que o eventual acto de indeferimento tenha sido praticado. Outra consequência projecta-se no plano da prova. É natural que recaia sobre o interessado o ónus de demonstrar o bem fundado da sua pretensão, o preenchimento dos respectivos elementos constitutivos, ao que à Administração caberá contrapor a demonstração dos eventuais factos impeditivos ou extintivos que lhe possam ser oponíveis.
- existe uma óbvia distinção entre as funções do pedido de condenação à prática de acto administrativo devido e do pedido de impugnação de actos administrativos à apesar de inseridas no mesmo tipo de acção, estas assumem funções distintas. O pedido de impugnação de actos administrativos surge como um meio para o particular recorrer de actos administrativos que apresentem vícios de ilegalidade. Assim, a impugnação de actos surge como o meio de defesa da legalidade por excelência e como o meio de proteger os particulares que, para verem a sua esferia jurídica reequilibrada, após uma intervenção ilegal por parte da administração, se bastam com a mera anulação do acto. No caso de se estar perante uma actuação administrativa, onde o cidadão se vê ferido nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, não se bastando com a mera a ulação, necessitanto ainda da prátiva de um outro acto para que a sua posição jurídica seja salvaguardada e regulada, nestas situações valeria o pedido de condenação para a prática do acto devido, quer a actuação da Administração fosse a recusa expressa ou a omissão.
- assume-se, parece, um pedido de anulação implícito no pedido de condenação à pática, quando se esteja perante uma recusa expressa de praticar tal acto: ponúncia condenatória como elemento que elimina da ordem jurídica o acto de indeferimento expresso à no caso de se estar perante uma recusa expressa por parte da Administração, o particular dirige-se ao tribunal através do pedido de condenação, não sendo necessária a impugnação do acto de recusa, já que a pronúncia condenatória apresenta um duplo sentido: por um lado, profere uma injunção à Administração para que esta pratique o acto devido por lei e, por outro, ao proferir essa injunção faz desaparecer da ordem jurídica o acto de recusa.

  • Requisitos
Quanto ao momento em que se suscita a utilização da figura da condenação à prática de acto administrativo devido, podemos configurar da seguinte forma:
1-      À Administração incumbe um dever de agir resultante de uma «jurisdificação» da sua obrigação genérica de actuar prevista no art.9º do CPA. Tal «jurisdificação» decorre da existência concreta de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão de um acto administrativo;
2-      O particular, titular de tal direito ou inteesse, apresenta requerimento à Administração exigindo a prática do acto que lhe é devido por lei, para que o seu direito ou interesse protegido seja concretizado;
3-      O requerimento deve ser feito a órgão competente. Caso seja feito a órgão incompetente, este deve remeter oficiosamente para o órgão legalmente competente (art.67º/3 do CPTA);
4-      Face à apresentação do requerimento, a Administração tem atitude ilegal (art.67º/1), que pode apresentar uma das seguintes formas:
- silêncio, que equivale a omissão pura (al.a));
- recusa expressa da prática do acto requerido que se apresenta como legalmente devido (al.b));
- recusa de apreciação do requerimento (al.c)).


Cabe fazer uma breve análise de cada uma destas figuras:
- quando é que existe um dever de a Administração praticar um acto administrativo? à atendendendo ao art.9º/1 do CPA, existe um dever de pronúncia, por parte da Administração, sobre todos os assuntos apresentados pelos particulares que recaiam no âmbito da sua competência. Existe, assim, um dever genérico para a Administração actuar. A Administração tem funções como remover obstáculos, facilitar actividades e até mesmo defender o interesse público.
Assim, sobre a Administração existe um dever constante de actuar, um dever de agir. Se esse dever não é observado, deparamos com um caso de Má Administração.
O dever de a Administração praticar um acto administrativo depende de duas condições: a primeira, resulta um reconhecimento expresso de um dever administrativo de actuar; a segunda, dependente do conteúdo da esfera jurídica do particular que necessita albergar um direito subjectivo ou um interesse legalmente protegido.
- quando existe omissão por parte da Administração? à a lei fala em omissão (art.66º/1 do CPTA) em situações em que «não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido» (art.67º/1 al.a)), e em inércia (art.69º/1 do CPTA).
A problemática prende-se com a questão dos actos tácitos. Em termos de indeferimento tácito, não há dúvidas de que este está incluído no conceito de omissão. Será que o deferimento tácito também se encontra incluído no conceito de omissão? Quanto a esta questão, a doutrina já não é unânime:
O Prof. Mário Aroso de Almeida afirma que não. Para este autor «em situações de deferiemento tácito, não há, portanto, lugar para a propositura de uma acção de condenação à prática do acto omitido, pelo simples motivo de que a produção desse acto já resultou da lei. Poderá ser, quando muito, proposta uma acção dirigida ao reconhecimento de que o acto tácito de produziu ou porventura de condenação da Administração ao reconhecimento de que assim é, para o efeito de adoptar os actos jurídicos e/ou as operações materiais que sejam devidos por esse facto.
João Tiago da Silveira apresenta críticas ao instituto do deferimento tácito:
- proporcionador da adopção de comportamentos ilícitos;
- figura atentatória de interesses públicos e de terceiros;
- devolução da competência decisória administrativa para os particulares;
- potenciador de vícios no funcionamento da Administração;
- elemento conducente à falta de segurança para o particular; e
- dificulades na execução.
Quando existe uma recusa de apreciação do requerimento? à a situação em que a Administração, embora fundamentando, afirma expressamente que não aprecia o requerimento quanto ao fundo da questão, ofende o direito ou o interesse detido pelo particular em que seja emitido um acto administrativo, visto, no caso de se ter o direito à sua emissão, tal supor, logicamente, que a Administração não tem poder discricionário quanto à decisão de agir ou não agir.

  • A legitimidade (art.68º do CPTA)
Legitimidade activa (nº1)
Em primeiro, temos os particulares que «alegue(m) ser titular(es) de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão desse acto (al.a))».
De notar que, epsar de a legitimidade activa na alínea a) surgir intimamente ligada ao particular, tomado como indivíduo isolado, o mesmo podr é oferecido para as «pesoas colectivas, públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (al.b)).
Ainda no âmbito da legitimidade activa, o legislador previu a possibilidade de o instituto poder actuar como garante da legalidade e como tal alargou a extensão daqueles que podem propor a acção com o respectivo pedido.
Deste modo, concede-se a legitimidade activa ao Ministério Público (al.c)) que actua em nome do interesse público e dos interesses difusos, e às entidades que constam do art.9º/2 do CPTA, na defesa dos interesses em tal norma estabelecidos.

Legitimidade passiva (nº2)
Neste caso, tem de se fazer uma alusão aos contra-interessados, a quem a prática do acto omitido possa directamente prejudicar ou que trnham legítimo interesse em que ele não seja praticado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo. Mas há que se fazer notar que o conceito de contra-interessados deve ser restringido apenas aos contra-interessados directos, como forma de delimitar correctamente o universo de participantes no processo, especialmente no caso de se tratar de protecção de interesses difusos.

Prazos para accionar a acção (art.69º do CPTA)
Neste caso, o legislador distinguiu entre as situações de inércia ou omissão e as que representam uma recusa.
Caso se trate de uma actuação omissiva, o particular tem um ano para propor a acção, iniciando-se a contagem a partir do momento em que cessa o prazo legal de decisão para a Administração. No entanto, o CPA não apresentou um prazo geral de decisão. A melhor solução parece ser a de passar a considerar o prazo de 90 dias dos indeferimento e deferimento tácitos (art.109º e 108º do CPA, respectivamente), como o prazo regra no qual a Administração tem o dever de decidir.
De notar que uma vez expirado o prazo de um ano estabelecido pelo art.69º/1, o interessado por apresentar de novo o requerimento. Como não houve anteriormente qualquer decisão, a este requerimento não pode ser oposto o regime do art.9º/2.
No caso de se tratar de recusa por parte da Administração, o prazo de propositura é reduzido para 3 meses, como estabelece o art.69º/2, suscitando-se aqui a questão sobre a posibilidade de existir recurso hierárquico, por via da remissão do nº3 para os art.59º e 60º do CPTA.


Poderes de pronúncia do tribunal
Quanto aos poderes de pronúncia, mais especificamente de condenação, que são conferidos aos tribunais administrativos, tiveram como importante introdução, após a reforma de 2002/2004, o novo poder de que lhes permite condenar a Administração à prática de actos administrativos ilegalmente omitidos ou recusados, regulado nos art.66º e seguintes do CPTA. Este novo poder foi o resultado de uma imposição constitucional, uma vez que a reforma não podia deixar de proporcionar aos interessados, como dispõe o art. 268º/4 da CRP, “a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”. Quanto a este aspecto, é de citar Barbosa de Melo, que refere que durante  debate público acerca da reforma do contencioso administrativo, a Comissão Eventual de Revisão da Constituição discutiu a questão de saber “se a providência jurisdicional contra a não-prática ou omissão de um acto por parte da Administração devia compreender uma pronúncia declarativa, condenatória ou substitutiva; outra questão era a de saber se esta providência deveria ser obtida através de recurso de anulação, ou deveria para isso criar-se uma forma de acção própria e autónoma. Como refere o autor “a Comissão acabou por entender que a Constituição devia deixar a resolução destas e outras questões à liberdade conformadora do legislador ordinário[2].
A opção do CPTA, após a reforma, à luz da Verpflichtungsklage alemã, foi a de instituir, no âmbito da acção administrativa especial, o processo de condenação à prática de actos devidos como a sede adequada à tutela contenciosa das posições subjectivas de conteúdo pretensivo, que se dirijam à emissão de actos administrativos, independentemente de saber se o respectivo conteúdo é ou não vinculado e que atitude adoptou a Administração, em relação à pretensão que lhe foi apresentada [3].
De referir, quanto a este aspecto, que o CPTA confere aos tribunais administrativos, no art.3º nº2, o poder de fixarem oficiosamente, na situação em que são chamados a condenar a Administração, o prazo dentro do qual os deveres que são impostos devem ser cumpridos, e quando se justifique, o poder de aplicarem sanções pecuniárias compulsórias, nos termos do art. 169º, visando forçar a Administração a cumprir as obrigações que sobre esta recaiam.

Mariana Serra, nº22024

Bibliografia:
- Manual de Processo Administrativo - Mário Aroso de Almeida 
- «A acção de condenação do acto administrativo legalmente devido» - Paula Barbosa
- «O pedido de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido» - Rita Calçada Pires
- «O novo regime do Processo dos Tribunais Administrativos» - Mário Aroso de Almeida
- «Grandes linhas da reforma do Contencioso Administrativo» - Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida
- «O debate universitário» - Barbosa de Melo





[1] Rita Calçada Pires, “O pedido de condenação à prática de acto administrativo devido – Desafiar a modernização Administrativa”.
[2] Barbosa de Melo, “O debate ubiversitário”
[3] Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, “Grandes linhas da reforma do Contencioso Administrativo”

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