sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O Contencioso Pré-Contratual Urgente

        i.         Generalidades

Em primeiro lugar cabe-nos definir o que é o contencioso pré-contratual. Segundo Pedro Gonçalves, é um sistema de impugnação jurisdiscional de normas administrativas reguladoras de procedimentos pré-contratuais e dos actos administrativos relativos à formação de contratos da Administração Pública. Até 1998, não havia qualquer desigualdade quanto à impugnação destes actos e ao regime geral de impugnação de normas e actos administrativos. Contudo, neste mesmo ano, surge o DL n.º 134/98, de 15 de Maio, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 89/665/CEE, que passou a estabelecer um regime especial para actos pré-contratuais relativos à formação de contratos de empreitada de obras públicas, prestação de serviços e fornecimento de bens. Como refere Mário Aroso de Almeida, [1] são "processos de impugnação dos actos administrativos praticados no âmbito do procedimento de formação desses tipos específicos de contratos e apenas desses, que são subtraídos ao modelo normal de tramitação dos processos impugnatórios, para serem submetidos a um modelo de tramitação especial, que se pretende mais célere, e à aplicação do regime dos processos urgentes". A razão para isso, reside na circunstância de os contratos do tipo referido se encontrarem abrangidos pelo âmbito da aplicação de duas directivas comunitárias, as Directivas do Conselho n.º 89/665/CEE, de 21 de Dezembro e n.º 92/13/CEE, de 25 de Fevereiro que, entre outras coisas, exigem que os Estados membros da União Europeia criem condições para a rápida resolução dos litígios que possam surgir a propósito de formação daqueles contratos rápidos.

Em segundo lugar, cabe-nos definir o que é ao certo um processo urgente (art. 35.º/2, 36.º/1 e arts. 97.º e seguintes).[2] A ideia destes processos radica a convicção de que determinadas questões devem ter, quanto ao seu mérito, uma resolução judicial num tempo curto. Dito de outra forma, estas questões não devem ou não podem demorar a decidir aquele tempo que possa ser considerado normal para a generalidade dos processos, nem para elas se revela suficiente ou adequada uma protecção cautelar que regule provisoriamente a situação em termos de poder assegurar a utilidade da sentença produzida em tempo normal.[3]
O CPTA prevê quatro meios de processos principais: o contencioso eleitoral (arts.97.º a 99.º); o contencioso pré-contratual (arts. 100.º a 103.º): a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (arts. 104.º a 108.º) e a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (arts. 109.º a 111.º).
A previsão de um processo autónomo e urgente resulta da necessidade de assegurar duas ordens de interesses: por um lado, promover a transparência e a concorrência; por outro, garantir o início rápido da execução dos contratos e a respectiva estabilidade depois de celebrados, protegendo os interesses públicos em causa e ainda os interesses dos contratantes.
            São diversas as razões pelas quais o nosso legislador do contencioso administrativo consagrou a urgência de alguns processos. A urgência do contencioso pré-contratual é uma urgência que nos é imposta de fora. O legislador tem pouca margem de liberdade, por imposição da União Europeia tem de prever uma tramitação mais célere, para o contencioso pré-contratual de quatro tipos de contratos.

      ii.         Objecto

Este meio deve ser utilizado quando esteja em causa a ilegalidade de quaisquer decisões administrativas relativas à formação de determinado tipo contratos.[4] Assim, através deste meio pode ser impugnado todo o acto administrativo relativo à formação desses contratos, bem como os actos equiparados de entidades privadas.[5] Caso o contrato seja entretanto celebrado, o objecto do processo é ampliado à impugnação do próprio contrato, embora apenas quanto às invalidades que derivem do procedimento pré-contratual.

    iii.       Os procedimentos pré-contratuais

Neste âmbito, surge-nos a questão de saber quais são os procedimentos pré contratuais abrangidos. À primeira vista, não são visíveis quaisquer problemas na medida em que a lei é bastante clara ao estabelecer que só se subsumem nesse meio processual os litígios que se verifiquem no contexto dos procedimentos de formação dos contratos de empreitada, concessão de obras públicas, prestação de serviços e de fornecimento de bens. Assim, ficam excluídos não apenas os procedimentos adjudicatórios de direito privado, mesmo que aberto por entidades públicas, que por força da alínea e) do art. 4.º/1 do ETAF não cabem no âmbito da jurisdição administrativa, bem coimo os procedimentos administrativos tendentes à celebração de quaisquer outros contratos de espécie diferente das acima assinaladas.[6]
          Ficam também excluídos do contencioso pré-contratual os litígios existentes em procedimentos concorrenciais de formação de actos administrativos. [7] Embora seja a solução da lei, fica por saber, quando esteja em causa a atribuição unilateral, por parte das entidades adjudicantes sujeitas a procedimentos adjudicatórios de direito publico, de quaisquer vantagens ou benefícios através de acto administrativo ou equiparado, em substituição da celebração de um contrato publico sujeito ao regime do contencioso pré-contratual.
            Seria um avanço significativo, no domínio das garantias adjectivas do direito administrativo, se todos os procedimentos adjudicatórios de direito público tendentes à celebração de contratos ficassem sempre sujeitos a este regime que temos descrito.

    iv.         A legitimidade activa

A legitimidade activa no contencioso pré-contratual está aberta aos candidatos e concorrentes que participam no procedimento adjudicatório. O mesmo será para o Ministério Público; para as pessoas que, embora interessadas em participar, não possam aceder ao procedimento por não respeitarem as regras estabelecidas[8] e, ainda pessoas que operam no “mercado”.[9] A questão que se coloca é, se, por força da remissão do art.100.º/1 CPTA e na falta de disposição especial, não deve reconhecer-se que esse âmbito é mais alargado, incluindo todas as pessoas, órgãos e entidades a que se refere o art. 55.º/1.

      v.       O prazo do contencioso pré-contratual

       Dispõe o artigo 101.º:
“Os processos do contencioso pré-contratual tem carácter urgente e devem ser intentados no prazo de um mês a contar da notificação dos interessados ou, não havendo lugar a notificação, da data do conhecimento do acto.”
Um primeiro problema que o prazo do mencionado artigo coloca é o de saber qual a sua influência em sede de revogação de decisões pré-contratuais. No entanto, no caso de não estar pendente uma impugnação judicial do acto, o art.141.º do CPTA estabelece que a revogação por ilegalidade só pode ter lugar até ao termo do prazo mais longo que haja para a dita impugnação.[10]
            O prazo do art.101.º tem sido considerado aplicável, à impugnação de actos nulos, art. 58.º/1 do CPTA e art. 134.º/2 do CPTA. Com alguma oposição da doutrina quanto a este aspecto, consideramos então que, com respeito ao prazo do art.101.º diverge quanto ao prazo aplicável aos actos nulos. Os tribunais têm-se manifestado favoravelmente no sentido do prazo para a impugnação de actos nulos de um mês e, não havendo nenhuma diferença entre o regime dos actos nulos versus actos meramente anuláveis. O problema é que, pode estar a consagrar-se uma solução gravemente danosa para os valores jurídicos que se “escondem” por trás das causas de nulidade de um acto administrativo. Daí que alguma doutrina tenha vindo a demonstrar a sua dissonância quanto a este aspecto, considerando que a nulidade do acto implica que este não produza efeitos jurídicos. Portanto, isso implica que esses actos sejam impugnáveis a todo o tempo. [11] Uma parte da doutrina, como o Prof. André Salgado de Matos, critica a posição dos tribunais no sentido de ser impossível a produção de efeitos jurídicos, logo não concorda que o decurso do prazo tenha como efeito a consolidação de actos nulos.
            A interpretação correcta a fazer do art. 101.º é a de que, este artigo, apenas vem determinar a aplicação de um prazo especial de impugnação aos actos administrativos pré-contratuais para os quais a lei substantiva preveja um prazo geral. Isto é, o artigo a reduzir ou a limitar, no presente caso de actos administrativos pré-contratuais, o prazo de três meses dos actos anuláveis do art.58/2/b do CPTA.
            Por último, coloca-se a questão de saber se é permitido aplicar ao procedimento urgente de actos pré-contratuais o art.58.º/4, que permite a admissão de uma impugnação apresentada fora do prazo, se se demonstrar que a tempestiva apresentação, não era exigível a um cidadão diligente. Assim, quanto ao regime do art. 58.º/4, é uma questão de justo impedimento [12] e de erro desculpável. De acordo com o Prof. Vieira de Andrade, deve haver uma aplicação subsidiária do preceito, a um prazo razoável e, que poderá ir apenas até à celebração do contrato. Assim sendo, o artigo referido pressupõe que os actos administrativos só se consolidam na ordem jurídica ao fim do prazo de um  ano e, no contencioso urgente pré-contratual, os actos consolidam-se no prazo de um mês, segundo o art. 101.º. O Prof. Mário Aroso de Almeida e restante jurisprudência defendem que não deve ser aplicado o art.58.º/4 nestes casos.

    vi.           Tramitação

Em relação à tramitação, segue as regras estabelecidas da acção administrativa especial, mas com alterações: a possibilidade de concentração numa audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, com alegações orais e sentença imediata, arts. 102.º e 103.º.[13]
Como tem sido afirmado, a urgência do contencioso pré-contratual não tutela apenas o interesse do autor numa decisão rápida, nem apenas o interesse da Administração numa decisão num curto espaço de tempo, mas tutela, o facto, o interesse de todos.[14] O prazo é assim contado a partir de um mês desde a notificação dos interessados ou do conhecimento do acto, art. 101.º. A propositura da acção não suspende o procedimento, podendo ser interposta a providência cautelar do art.132.º.
Havendo lugar a impugnações administrativas, como estas serão em regra facultativas, o prazo suspende-se e só volta a contar a partir da decisão sobre essa impugnação ou do termo do prazo legal respectivo, sem prejuízo de o interessado propor entretanto a acção principal ou solicitar providências cautelares nos termos do art. 59.º/4 e 5. Se a impugnação for necessária, suspende a eficácia do acto.
Quanto aos demais pressupostos, aplicam-se, por força do art. 100.º/1, as respectivas à legitimidade (art.55.º) e à prossecução da acção pelo Ministério Público (62.º).


Ana Rute Costa, nº 19490



Bibliografia:
- ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, Março 2013
- GONÇALVES, Pedro, "O contencioso administrativos pré-contratual", in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 44, Março/Abril de 2004.
- GONÇALVES, Pedro, “Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, in Cadernos de Justiça Administrativa” n.º62 Março/Abril de 2007.
- CABRAL, Margarida Olazabal, “Processos urgentes principais - em especial, o Contencioso pré-contratual”. In Cadernos de Justiça Administrativa, N.º 94 Julho/Agosto.
- OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, “O Contencioso Urgente da Contratação Pública”, in Cadernos de Justiça Administrativa, N.º 78 Novembro/Dezembro de 2009.
- ANDRADE, José Carlos Vieira de, "A Justiça Administrativa", Coimbra, Almedina, 2009.
- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno de 1.º Secção) n.º 2/2001, Proc. 225/11 de 16 de Junho de 2011.
- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Proc. 0598/06 de 3 de Outubro de 2006.





[1] “in” O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, pág. 259.
[2] O motivo pelo qual se denominam de “processos urgentes” prende-se com a necessidade de urgência na obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa de forma mais célere que a exigida pela tramitação normal.
[3] Os processos urgentes distinguem-se dos não urgentes, na medida em que estes últimos consubstanciam duas formas de processo: a acção declarativa comum, (art.. 35.º/1 e arts. 37.º e seguintes) e a acção declarativa especial (art. 35.º/2 e arts. 46.º e seguintes).
[4] Estão incluídos quatro tipos contratuais: empreitada, concessão de obras públicas, prestação de serviços e fornecimento de bens.
[5] O artigo 100.º prevê, para além da impugnação de actos administrativos pré-contratuais, a impugnação de actos equiparados praticados por sujeitos de direito privado (art. 100.º/3), a impugnação do programa, do caderno de encargos ou de qualquer outro documento conformador do procedimento de formação do contrato (art. 100.º/2) e a impugnação do contrato, quando celebrado na pendência do processo (art. 102.º/4).
[6] Como por exemplo, os contratos de parcerias público-privadas institucionalizadas, de concessão de serviços públicos.
[7] Licenciamento ou autorização de exercícios de actividades económicas de privados, condicionadas, reservadas ou limitadas por lei.
[8] São os casos de “adopção de procedimento ilegal”.
[9] São os casos de “concurso lesivo”.
[10] Solução que, no âmbito da acção administrativa especial, considerando o prazo de que dispõe o Ministério Público, segundo o art.58.º/2 do CPTA, permite essa revogação até um ano após a prática do acto ilegal.
[11] A imposição do prazo de um mês no artigo 101.º implica que, depois de decorrido o prazo, o vício fosse sanado e que o acto produzisse os seus efeitos, o que é completamente impossível perante estes casos,
[12] Principio Geral de Direito
[13] O processo urgente tem assim uma autonomia limitada em relação à acção administrativa especial, sendo a sua tramitação mais rápida.
[14] Tutela o autor, a Administração, os contra-interessados, os terceiros interessados no contrato em questão, os cidadãos em geral, a sociedade.

1 comentário:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.