sábado, 1 de novembro de 2014

Dos Processos Urgentes: A relação entre o Contencioso Pré-Contratual e as Providências Cautelares em especial



por Teresa Mouro, aluna n.º 21972

O tempo urge e existem determinadas questões que devem receber uma rápida resolução judicial. Questões essas que não devem e não podem, pelo seu mérito, demorar a decidir o tempo que é tido como normal para a generalidade dos processos. Atendendo a tais necessidades, a Reforma do Contencioso Administrativo introduziu a figura dos Processos Urgentes, a que o CPTA dedica o Título IV. Todavia, se hoje aparece autonomizado em duas categorias – vulgo: impugnações relativas a eleições administrativas e à formação de certos tipos contratuais; e intimações para prestação de informações e para protecção de direitos, liberdades e garantias -, à luz do anterior regime, o conceito de processo urgente confundia-se e extinguia-se no conceito de procedimento cautelar, visto que se apresentava como uma característica e não como uma forma de processo, conforme o disposto no artigo 36º, n.º 1 do CPTA. É a relação entre estas duas figuras – mais concretamente, no contencioso pré-contratual, regulado nos artigos 100º a 103º, e os procedimentos cautelares, artigo 112º e seguintes -, que vai merecer a nossa atenção nas próximas linhas.

O contencioso pré-contratual define-se como o conjunto de garantias jurisdicionais de tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, face a actos administrativos e normas conformadoras dos procedimentos de formação dos contratos elencados de forma taxativa no nº 1 do artigo 100º, que lesem esses mesmos direitos ou interesses. Como refere o supracitado artigo, trata-se, na ver­da­de, de es­ta­be­lecer um regime específico pa­ra a impugnação con­tenciosa dos actos ad­mi­nis­tra­­tivos pra­ticados no âmbito do procedimento de for­mação de certos e determinados tipos contratuais públicos: os contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras pú­bli­cas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens. Contudo, importa salientar a extenção da aplicação desta forma de processo a actos jurídicos que não são actos administrativos. É o que sucede com o programa do concurso, o caderno de encargos e os demais do­­­cu­mentos conformadores do procedimento de formação do contrato, que, pelo seu conteúdo genérico, não devem ser qualificados como actos administra­ti­vos (artigo 100º, nº 2). É também o caso dos actos jurídicos praticados por sujeitos privados, no âmbito de pro­­cedimentos pré-contratuais de direito público (ar­ti­go 100º, nº 3). Está, neste último do­mí­­nio, a pensar-se nos casos em que pes­so­as colectivas de direito privado são obrigadas por lei a adoptar — ou, em todo o caso, op­tam por adoptar — pro­ce­di­men­tos pré-contratuais previstos e re­gu­la­dos por nor­mas de direito público.

A sujeição do contencioso pré-contratual ao regime autónomo dos processos urgentes, enquanto processo de “tramitação especial”, foi feita através de uma delimitação negativa – visto que o artigo 46º, nº 3 exclui de forma expressa os actos praticados no âmbito dos procedimentos para a formação de contratos previstos no artigo 100º, n.º1 – e de uma delimitação positiva – por se considerar que apenas os procedimentos para a formação de contratos elencados no artigo 100º, nº1 ficam sujeitos à disciplina do contencioso contratual, ainda que se estenda o seu âmbito de aplicação material aos números 2 e 3 do presente artigo. E resultou da necessidade de assegurar duas ordens de interesses: promover a transparência e a concorrência, garantindo, simultaneamente, o início rápido da execução dos contratos e a respectiva estabilidade depois de celebrados, de modo a proteger os interesses públicos em causa e os interesses dos contratantes.

Não obstante de se tratar de um processo instituído em razão da urgência na obtenção de uma decisão de fundo sobre o mérito da causa, o contencioso pré-contratual pode inclusivamente ser articulado com os processos cautelares previstos no artigo 112º e seguintes, de modo a que se acautele de melhor forma os interesses legalmente protegidos e os direitos dos particulares, evitando, assim, os efeitos lesivos do acto ou norma que pretendem ver impugnados. Desta feita, tendo em consideração a natureza acessória e desprovida de autonomia dos processos cautelares, concluímos que entre eles e o contencioso pré-contratual se estabelece uma relação de dependência, na medida em que será neste último que, sem prejuízo do preceituado no artigo 121º, se decidirá sobre o mérito da questão. 

Por último, não poderíamos finalizar o estudo da relação entre o contencioso pré-contratual, enquanto processo urgente, e os procedimentos cautelares sem antes fazer uma breve referência ao regime específico do artigo 132º, atinente às providências relativas aos procedimentos de formação de contratos. Nos termos do n.° 1 do artigo 132º, quando estejam em causa a anulação ou declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação de contratos, podem ser requeridas providências destinadas a corrigir a ilegalidade ou de impedir que sejam causados danos aos interesses em presença, incluindo a suspensão do procedimento de formação do contrato. Daqui resulta que, aparentemente, o mesmo apenas se aplica à impugnação de actos administrativos, não prevendo a adopção de providências cautelares para evitar a produção de efeitos lesivos resultantes de normas conformadoras ilegais, o que nos leva a concluir pela não coincidência com os objectivos do contencioso pré-contratual. Tal posição encontra acolhimento por parte de alguma doutrina, que entende não haver periculum in mora, derivado o facto das normas conformadoras dos procedimentos pré-contratuais serem conhecidas desde o início do concurso e, como tal, o processo urgente, previsto no n.º 2 do artigo 100º, é considerado suficiente para acautelar os direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Porém, quando confrontado com o n.º 7, deparamo-nos com uma referência expressa à impugnação das disposições conformadoras dos procedimentos pré-contratuais, pelo que entendemos que o legislador pretendeu que este regime cautelar específico também se aplicasse à impugnação de norma.

Concluindo, quanto aos critérios de decisão das providências cautelares, resta-nos fazer referência a dois aspectos intimamente relacionados com o contencioso pré-contratual. No início deste artigo caracterizámos os processos urgentes, como processos que visavam a obtenção, de modo célere, de uma decisão quanto ao mérito da causa. Este continua a ser o âmago dos processos urgentes. Contudo, no âmbito dos procedimentos cautelares, e sobretudo no que toca aos critérios de decisão, vemos que existem disposições que transformam o próprio procedimento cautelar em meio de decisão do mérito da causa, ainda que na pendência de um processo urgente como seja o contencioso pré-contratual. 

Desde logo, o próprio artigo 120.°, n.° 1, al. a) prevê que o tribunal decrete a providência cautelar quando seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, designadamente por estar em causa a impugnação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma anteriormente anulada ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado, declarado nulo ou inexistente. Não sendo esta, à semelhança das demais, uma definição expressa da antecipação da decisão do mérito da causa, não deixa de ser, de facto, uma decisão de fundo, na medida em que o decretar da providência cautelar tem como fundamento a invalidade do acto em causa. Ainda assim, no já nosso conhecido nº 7 do artigo 132º, previu-se expressamente a possibilidade do juiz, desde que demonstrada a ilegalidade da especificação contida nos documentos do procedimento, corrigir essa ilegalidade, através dos seus amplos poderes de pronúncia, decidindo assim do fundo da causa, segundo o artigo 121º.

O artigo 121.° é aquele que mais directamente contende com o contencioso pré-contratual enquanto processo urgente, na medida em que o legislador prevê, em sede de procedimento cautelar, a antecipação da decisão sobre o mérito da causa, quando seja manifesta a urgência definitiva, desde que tenham sido trazidos ao processo todos os elementos, pode o tribunal antecipar o juízo sobre a causa principal. Sendo certo que a decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal é ela própria sindicável, a mesma contende com o carácter urgente do contencioso pré-contratual e aquilo que o caracteriza. Pois, o que se ganha em tempo, perde-se em garantias próprias do contencioso pré-contratual, levando-nos isto a criticar a actuação do nosso legislador, que estatuiu um regime específico para os procedimentos cautelares relativos a procedimentos pré-contratuais e não aproveitou para afastar a aplicabilidade do artigo 121.° ao contencioso pré-contratual.

Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010
AMARAL, Diogo Freitas/ALMEIDA, Mário Aroso de, “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, 2007
DIAS, Paulo Linhares, “O contencioso pré-contratual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”,http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=64444&ida=64451
MARTINS, Ana Gouveia, “A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo (Em Especial nos Procedimentos de Formação dos Contratos)”, Coimbra Editora, 2005
RIBEIRO, Maria Teresa de Melo, “O risco de os processos cautelares se transformarem em processos principais: alguns exemplos práticos” in CEJUR - Cadernos de Justiça Administrativa, nº 52 Julho/Agosto 2005
SILVA, Vasco Pereira, “O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”, 2ª Edição, Almedina, 2009


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