sábado, 1 de novembro de 2014

A Imperfeita Dualidade Processual e o seu Inevitável Fim


Helena Cardana, nº 21918


Talvez a mais importante alteração a trazer pela reforma do contencioso administrativo que se aproxima é a uniformização das formas de processo não urgente e cabe portanto expor  aquilo que está por de trás da unicidade pensada para o futuro contencioso administrativo –  A bipolaridade processual consagrada nos dias de hoje. 
O que motivou a bipolaridade e não a unipolaridade? Como funciona a nossa bipolaridade? Será perfeita? Seria o seu destino acabar por se tratar, em ultima instância de uma fase de transição? E a uniformização que se propõe, será ela inflexível?

O Regime da LPTA (1985)


Apesar de este período de 1985-2002 não ter hoje grande relevância para além da perspectiva histórica, para perceber uma reforma faz todo o sentido descer às evoluções que anteriormente já se concretizaram para entender as tendências e inclinações e para que rumo se dirigem as reformas seguintes.
Hoje, entender a futura Ação Administrativa Única passa por entender o regime actual e portanto também por entender, por exemplo em que medida a Acão Administrativa Especial é uma espécie de legado de anterior Recurso Contencioso de Anulação.
Ora as formas de processo na LPTA (Lei Processo dos Tribunais Administrativos, DL 267/85 de 16/7 de 1985) dividiam-se em Processos Principais e Acessórios, por sua vez os Processos Principais dividiam-se em Recursos Contenciosos, Contencioso eleitoral, Impugnação de Normas e Ações. As ações estavam ainda subdivididas em ações para reconhecimento de direitos ou interesse legítimos e em Outras. Nas outras cabiam, assim, quaisquer ações pertencentes ao direito administrativo mas sem regulação especial. Já quanto às ações para reconhecimento de direitos ou interesses legítimos, estas seriam uma espécie de categoria residual onde cabia tudo aquilo que outros meios processuais não tutelassem.
O Prof. Sérvulo Correia sugere que esta esquemática de formas de processos se aproxima mais de uma matriz multipolar mais do que de uma matriz bipolar para a qual a doutrina se inclinava.


A grande reforma do contencioso administrativo 2002-2004


Ora com a grande reforma de 2002-2004, também uma das mais importantes alterações seria a consagração de uma nova matriz de formas de processo.
Estava finalmente concretizada a tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares, consagrada no Art.268º/4 que passaria a ser um dos princípios fundamentais da organização do Contencioso Administrativo
Esta arrebatadora vitória subjetivista conseguia a efetiva tutela dos direitos dos particulares ao assegurar que as sentenças fossem desde efeitos de anulação, a impugnação e ainda à condenação, através da fórmula “determinação da prática de atos devidos” (que já desde 1997 era devida).
Eis que o juiz-administrador parecia ter sido deixado num passado distante e se consagrava a plena jurisdição dentro das formas de processo o que fazia do contencioso administrativo finalmente conforme à constituição.

O Anteprojeto posto à discussão, antes da reforma, trazia para a mesa uma visão mais multipolar com alguma possibilidade de interconexão de todas estas ações principais cuja categoria se identificava pelos efeitos das sentenças pretendidas através da possível cumulação deste tipo de ações.
Por outro lado ponderava-se também uma matriz monista – a de unificar todos os meios processuais independentemente dos pedidos ou dos efeitos das sentenças, na linha do direito, italiano ou espanhol.
O legislador acabaria por escolher, nem uma nem outra e optaria por uma solução intermédia da Bipolaridade ou Dualidade de formas de processo que tomaria como sustentáculo o Regime já criado para o Recurso Contencioso e o Processo civil de declaração.

Ora o professor Sérvulo Correia, já na altura da discussão pela opção ou monista ou multipolar, defendia uma agregação da proposta multipolar em blocos mais abrangentes, mas sem apontar a solução de Unicidade. Defendia uma continuidade do “Recurso Contencioso” em que o pedido de anulação ou de declaração de nulidade fossem passíveis de cumular com pedidos de condenação à prática de atos devidos ou de indemnização por perdas e danos. Por outro lado o professor defendia ainda que a preservação de uma forma de tramitação específica para o Ato administrativo era perfeitamente compatível com outras manifestações de exercício unilateral do poder administrativo como, por exemplo, Ações para a condenação de atos devidos e impugnação ou declaração de ilegalidade de normas.
Porque não aglutinar então estas ações respeitantes às manifestações do exercício unilateral do poder administrativo numa só forma de processo?

A opção do legislador foi então consolidar dois tipos de forma do processo para os processos principais não urgentes. No que respeita à tramitação, nasciam assim a Ação Administrativa Especial  (AAE), firmada nos Artigos 46 e ss. do CPTA que revelava traços herdados do Recurso Contencioso anterior à reforma e a Ação Administrativa Comum, (AAC) sustentada em larga medida pelo Processo Civil de declaração com apenas algumas especificidades relativas ao direito Administrativo e firmada nos artigos 37º e seguintes do, então novo, CPTA.
Antes de mais cumpre então distinguir os critérios de distinção entre uma e outra. Ora a AAC delimita-se negativamente pois inserem-se nesta os processos para os quais não há regulação especial, dentro ou fora do código – o que exclui imediatamente o âmbito material das AAE que por sua vez, integram todos os processos relativos a atos administrativos e normas de acordo com o art.46º/2 do CPTA.
Desta forma podemos ver, bem delineada a arquitetura dual no que toca a formas de processo que ainda assim, conforme o Professor Vasco Pereira da Silva, está mais próximo da tal matriz de ação única do que do anteriormente pensado modelo multipolar – esta distinção atual trazida pela reforma afasta-se significativamente de uma repartição de forma de processo de acordo com os efeitos pretendidos do pedido.

A dualidade não ficou isenta de críticas e mereceu a especial reprovação da parte do Professor Vasco Pereira da Silva. São dois os pontos chaves da sua observação.
Como subjetivista, professor não pode deixar escapar que a dualidade representa de certa forma aquilo que são as manifestações de Administração agressiva, solidificada sobre o ato administrativo autoritário, a que corresponderia a AAE.
O primeiro é que esta é uma fase há muito desprovida de sentido, por um lado porque a Administração já não é a Administração Agressiva do ato administrativo autoritário mas sim “Prestadora e Infraestrutural” a que corresponde o ato administrativo de recorribilidade mediante a lesão dos direitos dos particulares e não definitivo e executório. Representava assim uma clássica distinção entre o contencioso de mera anulação e contencioso de plena jurisdição que simplesmente já não estava consagrada no Direito Português – o contencioso administrativo, ao abrigo do Art.268º/4 da CRP era claramente já um Contencioso de plena Jurisdição em que a condenação da administração à prática de atos devidos estava prevista.
Por outro lado o professor releva uma dificuldade terminológica decorrente de definições “comum” e “especial”. Segundo o Professor a AAE e na verdade e ação mais comum do direito administrativo, isto não só pela superioridade estatística de processos relativos a atos e normas como também pela possibilidade, consagrada pelo legislador nos Art.4º e 5º do CPTA de cumular pedidos que, independentemente, estariam inseridos numa AAE ou numa AAC. Quando assim acontece o Art.5º/1 designa especialmente como forma a seguir a da AAE, o que por outro lado aumenta ainda mais, também, o número de AAE propostas em sede de jurisdição administrativa.
Já o professor Mário Aroso de Almeida, apesar de aceitar como verdadeiros os factos expostos pelo Prof. Vasco Pereira da Silva conclui que eles não relevam para uma dificuldade terminológica. O que de facto acontece e que a AAC é de facto a forma de processo mais comum do Contencioso Administrativo por a AAE conter um regime especificamente Administrativo o que esta patente no art.5º do CPTA ao atribuir a pedidos cumulados com formas processuais diferentes a tramitação da AAE – por esta ser indispensável a ações sobre atos e normas ao passo que a tramitação da AAC será comum e portanto não específica.

A dualidade de formas processuais foi certamente questionada com algumas figuras importantes a pronunciarem-se pela uniformização, mas a decisão do legislador era essa e era essa que a partir de 2002-04 passaria a ser imposta.
A unicidade trazia ponderações à data muito complicadas que exporei mais à frente e todavia a Bipolaridade que o legislador consagrava em 2002-04 não era de forma alguma perfeitamente rígida ou absoluta. A este fenómeno, Sérvulo Correia chamou bipolaridade imperfeita.
A bipolaridade imperfeita é exemplificada por, logo em primeiro lugar, apesar de haver densa regulação específica do Recurso contencioso não se ter deixado de recorrer à aplicação do processo Civil, ainda que a título supletivo. Destarte AAE passa a ser composta por uma multiplicidade de subdivisões, e estas são referentes ao respetivo pedido e efeito pretendido pela sentença e que estão enumeradas nas alíneas do nrº 2 do Art.46º do CPTA o que demonstra uma dualidade que não esta solidificada o suficiente para não se inclinar um pouco para a multipolaridade. Por outro lado também há uma interpenetração entre os dois meios processuais impossível de contornar, e esta é a já abordada possível cumulação dos pedidos que, independentemente, seriam inseridos em AAC e AAE, configurada no art.5º. Há ainda outros exemplos que não vale a pena alongar como a apreciação incidental de atos administrativos em sede de AAC ou a ampliação do objeto processual a pedidos que deixam a AAE para se tornarem matérias de AAC.
Esta solução apontava para a flexibilização e que talvez já antevisse uma lógica que mais tarde ou mais cedo resultaria na convergência de que agora se fala para o futuro CPTA.
Contudo esta facilidade de lhe chamar lógica de flexibilidade não viria tão fácil para outros. A Bipolaridade, ainda que imperfeita, traria algumas dificuldades que alguns defendiam, como Vasco Pereira da Silva, ser em sede de Contencioso de plena jurisdição, desnecessária. Por seu lado, o Professor Aroso de Almeida argumenta que a dualidade embora de facto concretizada, via a sua coerência ameaçada por outras configurações que por opção do legislador escaparam a essa lógica – no seu entendimento, a tramitação do Art.78º, das AAE seria não um legado do recurso contencioso de anulação como tantos outros tinham defendido antes mas sim uma adaptação dos aspetos fundamentais do Processo Civil. Isto, o Professor justificava com a possibilidade de cumulação do já referido art.5º, e com a AAE ser desenhada com passibilidade de dar resposta a quaisquer litígios que se inscrevam no âmbito da jurisdição administrativa, levando à inevitável questão do “porque não a uniformização?”
A opção pela unicidade no início de 2000 trazia uma grande dificuldade. Que tramitação se aplicaria, nesta Ação administrativa não urgente única? Empregar-se ia em todos os processos a tramitação do processo civil de declaração? Mas e o que fazer com a denso acumular de soluções que ao longo dos anos se tinha dado quanto ao Recurso Contencioso? Para não referir o tratamento especificamente administrativo que alguns processos precisariam, sempre. E a radical privatização do Contencioso Administrativo, também estava fora de questão. Por outro lado fechar-se ia a porta ao Processo Civil cuja flexibilidade facilitava no dirimir de litígios não decorrentes de manifestações unilaterais de poder administrativo?
Uma terceira solução em abstrato, seria conceber de raiz um novo processo administrativo polivalente quanto as causas de pedir e pedidos. Mas não havia trabalho teórico e muito menos jurisprudencial em que esta grande modernização se pudesse apoiar, e não fazia sentido à data estar a pôr de lado uma longa praxis de conjugação de legislação de contencioso em constante auto-aperfeiçoamento com o processo civil de declaração.
A solução do legislador ficou-se por esta bilateralidade imperfeita de flexibilização e interconexão mas que não era nem o ideal, nem o desejado. Na verdade nos moldes ideais cabia apenas e só a uniformização mas a prática e a jurisprudência não o podiam aceitar imediatamente
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Dez anos depois a questão impõe-se, continuará fazer sentido? Certamente que não.
Os tempos mudaram e observa-se uma contínua e acentuada privatização do direito administrativo e também uma cada vez mais intensa tutela dos direitos dos particulares a que hoje já não se pode ficar indiferente – é estranho que por exemplo matéria de contratos e atos administrativos sejam tratados em sede processual diferentes quando cada vez mais andam "de mão dada", em que a comunicação interdisciplinar e fundamental.


Nova Reforma do Contencioso


Cumpre, contudo, ainda averiguar esta uniformidade projetada para a nova versão do CPTA. Em que medida esta uniformização se concretiza, que processos engloba? Que tramitação se lhe aplica? É esta unipolaridade rígida ou atenuada? E quais os benefícios que traz?
Ora de facto a nova ação administrativa passa a ser o único meio processual não urgente para dirimir litígios jurídicos administrativos. Ela aglutina as matérias correspondentes ao âmbito tanto da AAE como da AAC. Já antes se disse que a bipolaridade do regime atual é imperfeita, mas o professor Sérvulo Correia também define a Unipolaridade como atenuada. Isto porque um regime totalmente unitário seria impossível, e muitas das características que tornavam a AAE flexível estão agora presentes também na ação administrativa única.
É que a relativa especificidade que marcava os processos dentro das AAE tem de ser mantida e é necessária! É disto exemplo a continuidade da subdivisões da AAE como as elencadas no ART.46º/nrº2 do atual CPTA, agora como modalidades da Acão Administrativa única… e não é só uma questão de estrutura mas mais que isso é uma questão de regime requisitos e formalidades, isto porque a especificidade administrativa destes são imprescindíveis a determinados processos. Pende-se assim para a separação tendencial de regimes processuais quando se trate de litigar aspetos manifestantes de exercício do poder administrativo ou não. O que se passa é portanto que a dualidade se transfere das duas ações administrativas atualmente existentes para o seio de uma única. 
Resta saber então o regime de tramitação pelo qual se optou e se foi possível articular as soluções já anteriormente existentes com a Acão Administrativa única. Eis que nos deparamos com uma inovação insólita no modo de construir o pendor unitarista – em vez de contar apenas e somente ora com o processo civil declarativo ora com o regime desenvolvido a partir de soluções tradicionalmente administrativas o legislador desta vez parece optar por uma “minuciosa e ponderada urdidura de fios normativos advenientes ora da anterior versão do CPTA ora da renovada versão do CPC” nas palavras de Sérvulo Correia. Assim aposta-se numa unicidade formal que sem duvida caracteriza o novo meio processual não urgente mas que não se pode escapar a inevitável e engenhosa combinação de regras provenientes ora da marcha processual do atual CPTA ora da marcha do novo CPC o que mais uma vez confirma aquilo que se veio dizendo ate agora, que a especificidade não pode ser afastada e posta de lado, ela e necessária e não se podem tratar os processos que lhe correspondem como se tratam todos os outros.
Demonstra-se assim que tanto o carácter imperfeito da bilateralidade como o atenuado da unipolaridade era no mínimo inevitável, uma utopia.

Para terminar e seguindo a linha de pensamento do Prof. Sérvulo Correia pode de novo analisar-se a questão do papel da bipolaridade. Perguntar-se-ão alguns se valeram a pena dez anos desta dualidade processual imperfeita, quando a solução da unipolaridade tantas vezes considerada por alguns se afigurava a mais correta e desejada no contexto constitucional e evolutivo do direito administrativo.
Mas sem a bipolaridade atenuada, na qual o legislador inseria variadíssimos instrumentos de interconexão como a permeabilidade ao processo civil e sobretudo com a cumulação de pedidos com formas processuais diferentes, não teria sido possível experimentar gradualmente a composição de processos respeitantes a situações jurídicas não emergentes do exercício unilateral do poder administrativo no âmbito de meios processuais especificamente administrativos.
A consagração da bipolaridade pode ter parecido a alguns, como para o professor Vasco Pereira da Silva constituída sob “pré-conceitos” de natureza substantiva ainda baseados nos traumas de infância do direito administrativo e não justificada por razoes de verdadeira natureza processual. Mas na verdade esta introdução da bipolaridade sondava a praxis jurisprudencial para a indicação dos requisitos e limites para uma possível unificação que se vê dez anos depois quase concretizada.

Bibliografia:
AROSO DE ALMEIDA, MARIO –  “Manual de processo administrativo”, Reimpressão 2013, Almedina
PEREIRA DA SILVA, VASCO – “o contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as ações no novo processo administrativo” 2ª edição Almedina, 2009
CORREIA, SÉRVULO – “Da ação administrativa especial à nova ação administrativa”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 106

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