Helena Cardana, nº 21918
Talvez a mais importante alteração a trazer pela reforma do
contencioso administrativo que se aproxima é a uniformização das formas de
processo não urgente e cabe portanto expor
aquilo que está por de trás da unicidade pensada para o futuro
contencioso administrativo – A
bipolaridade processual consagrada nos dias de hoje.
O que motivou a bipolaridade e não a unipolaridade? Como
funciona a nossa bipolaridade? Será perfeita? Seria o seu destino acabar por se
tratar, em ultima instância de uma fase de transição? E a uniformização que se
propõe, será ela inflexível?
O Regime da LPTA (1985)
Apesar de este período de 1985-2002 não ter hoje grande
relevância para além da perspectiva histórica, para perceber uma reforma faz
todo o sentido descer às evoluções que anteriormente já se concretizaram para
entender as tendências e inclinações e para que rumo se dirigem as reformas
seguintes.
Hoje, entender a futura Ação Administrativa Única passa por
entender o regime actual e portanto também por entender, por exemplo em que
medida a Acão Administrativa Especial é uma espécie de legado de anterior
Recurso Contencioso de Anulação.
Ora as formas de processo na LPTA (Lei Processo dos
Tribunais Administrativos, DL 267/85 de 16/7 de 1985) dividiam-se em Processos
Principais e Acessórios, por sua vez os Processos Principais
dividiam-se em Recursos Contenciosos, Contencioso eleitoral, Impugnação
de Normas e Ações. As ações
estavam ainda subdivididas em ações para
reconhecimento de direitos ou interesse legítimos e em Outras. Nas outras cabiam, assim, quaisquer ações pertencentes ao
direito administrativo mas sem regulação especial. Já quanto às ações para
reconhecimento de direitos ou interesses legítimos, estas seriam uma espécie de
categoria residual onde cabia tudo aquilo que outros meios processuais não
tutelassem.
O Prof. Sérvulo Correia sugere que esta esquemática de
formas de processos se aproxima mais de uma matriz multipolar mais do que de
uma matriz bipolar para a qual a doutrina se inclinava.
A grande reforma do contencioso administrativo 2002-2004
Ora com a grande reforma de 2002-2004, também uma das mais
importantes alterações seria a consagração de uma nova matriz de formas de
processo.
Estava finalmente concretizada a tutela plena e efetiva dos
direitos dos particulares, consagrada no Art.268º/4 que passaria a ser um dos
princípios fundamentais da organização do Contencioso Administrativo
Esta arrebatadora vitória subjetivista conseguia a efetiva
tutela dos direitos dos particulares ao assegurar que as sentenças fossem desde
efeitos de anulação, a impugnação e ainda à condenação, através da fórmula
“determinação da prática de atos devidos” (que já desde 1997 era devida).
Eis que o juiz-administrador parecia ter sido deixado num
passado distante e se consagrava a plena jurisdição dentro das formas de processo o que
fazia do contencioso administrativo finalmente conforme à constituição.
O Anteprojeto posto à discussão, antes da reforma, trazia para a mesa uma visão mais multipolar com alguma possibilidade de interconexão de todas estas ações principais cuja categoria se identificava pelos efeitos das sentenças pretendidas através da possível cumulação deste tipo de ações.
Por outro lado ponderava-se também uma matriz monista – a de
unificar todos os meios processuais independentemente dos pedidos ou dos
efeitos das sentenças, na linha do direito, italiano ou espanhol.
O legislador acabaria por escolher, nem uma nem outra e
optaria por uma solução intermédia da Bipolaridade ou Dualidade de formas de
processo que tomaria como sustentáculo o Regime já criado para o Recurso
Contencioso e o Processo civil de declaração.
Ora o professor Sérvulo Correia, já na altura da discussão pela opção ou monista ou multipolar, defendia uma agregação da proposta multipolar em blocos mais abrangentes, mas sem apontar a solução de Unicidade. Defendia uma continuidade do “Recurso Contencioso” em que o pedido de anulação ou de declaração de nulidade fossem passíveis de cumular com pedidos de condenação à prática de atos devidos ou de indemnização por perdas e danos. Por outro lado o professor defendia ainda que a preservação de uma forma de tramitação específica para o Ato administrativo era perfeitamente compatível com outras manifestações de exercício unilateral do poder administrativo como, por exemplo, Ações para a condenação de atos devidos e impugnação ou declaração de ilegalidade de normas.
Porque não aglutinar então estas ações respeitantes às
manifestações do exercício unilateral do poder administrativo numa só forma de
processo?
A opção do legislador foi então consolidar dois tipos de forma do processo para os processos principais não urgentes. No que respeita à tramitação, nasciam assim a Ação Administrativa Especial (AAE), firmada nos Artigos 46 e ss. do CPTA que revelava traços herdados do Recurso Contencioso anterior à reforma e a Ação Administrativa Comum, (AAC) sustentada em larga medida pelo Processo Civil de declaração com apenas algumas especificidades relativas ao direito Administrativo e firmada nos artigos 37º e seguintes do, então novo, CPTA.
Antes de mais cumpre então distinguir os critérios de
distinção entre uma e outra. Ora a AAC delimita-se negativamente pois
inserem-se nesta os processos para os quais não há regulação especial, dentro
ou fora do código – o que exclui imediatamente o âmbito material das AAE que
por sua vez, integram todos os processos relativos a atos administrativos e
normas de acordo com o art.46º/2 do CPTA.
Desta forma podemos ver, bem delineada a arquitetura dual no
que toca a formas de processo que ainda assim, conforme o Professor Vasco
Pereira da Silva, está mais próximo da tal matriz de ação única do que do anteriormente pensado modelo multipolar – esta distinção atual trazida pela reforma afasta-se
significativamente de uma repartição de forma de processo de acordo com os
efeitos pretendidos do pedido.
A dualidade não ficou isenta de críticas e mereceu a especial reprovação da parte do Professor Vasco Pereira da Silva. São dois os pontos chaves da sua observação.
Como subjetivista, professor não pode deixar escapar que a dualidade representa de certa forma aquilo que são as manifestações de Administração agressiva, solidificada sobre o ato administrativo autoritário, a que corresponderia a AAE.
O primeiro é que esta é uma fase há muito desprovida de
sentido, por um lado porque a Administração já não é a Administração Agressiva
do ato administrativo autoritário mas sim “Prestadora
e Infraestrutural” a que corresponde o ato administrativo de
recorribilidade mediante a lesão dos direitos dos particulares e não definitivo e executório. Representava
assim uma clássica distinção entre o contencioso de mera anulação e contencioso
de plena jurisdição que simplesmente já não estava consagrada no Direito
Português – o contencioso administrativo, ao abrigo do Art.268º/4 da CRP era
claramente já um Contencioso de plena Jurisdição em que a condenação da
administração à prática de atos devidos estava prevista.
Por outro lado o professor releva uma dificuldade
terminológica decorrente de definições “comum” e “especial”. Segundo o
Professor a AAE e na verdade e ação mais comum do direito
administrativo, isto não só pela superioridade estatística de processos
relativos a atos e normas como também pela possibilidade, consagrada pelo
legislador nos Art.4º e 5º do CPTA de cumular pedidos que, independentemente,
estariam inseridos numa AAE ou numa AAC. Quando assim acontece o Art.5º/1
designa especialmente como forma a seguir a da AAE, o que por outro lado
aumenta ainda mais, também, o número de AAE propostas em sede de jurisdição
administrativa.
Já o professor Mário Aroso de Almeida, apesar de aceitar
como verdadeiros os factos expostos pelo Prof. Vasco Pereira da Silva conclui
que eles não relevam para uma dificuldade terminológica. O que de facto
acontece e que a AAC é de facto a forma de processo mais comum do Contencioso
Administrativo por a AAE conter um regime especificamente Administrativo o que
esta patente no art.5º do CPTA ao atribuir a pedidos cumulados com formas
processuais diferentes a tramitação da AAE – por esta ser indispensável a ações
sobre atos e normas ao passo que a tramitação da AAC será comum e portanto não
específica.
A dualidade de formas processuais foi certamente questionada com algumas figuras importantes a pronunciarem-se pela uniformização, mas a decisão do legislador era essa e era essa que a partir de 2002-04 passaria a ser imposta.
A unicidade trazia ponderações à data muito complicadas que exporei mais à frente e todavia a Bipolaridade que o legislador consagrava em 2002-04 não era de forma alguma perfeitamente rígida ou absoluta. A este fenómeno, Sérvulo Correia chamou bipolaridade imperfeita.
A bipolaridade imperfeita é exemplificada por, logo em
primeiro lugar, apesar de haver densa regulação específica do Recurso
contencioso não se ter deixado de recorrer à aplicação do processo Civil, ainda
que a título supletivo. Destarte AAE passa a ser composta por uma multiplicidade de
subdivisões, e estas são referentes ao respetivo pedido e efeito pretendido
pela sentença e que estão enumeradas nas alíneas do nrº 2 do Art.46º do CPTA o que demonstra uma dualidade que não esta solidificada o suficiente para não se
inclinar um pouco para a multipolaridade. Por outro lado também há uma
interpenetração entre os dois meios processuais impossível de contornar, e esta
é a já abordada possível cumulação dos pedidos que, independentemente, seriam
inseridos em AAC e AAE, configurada no art.5º. Há ainda outros exemplos que não
vale a pena alongar como a apreciação incidental de atos administrativos em
sede de AAC ou a ampliação do objeto processual a pedidos que deixam a AAE para
se tornarem matérias de AAC.
Esta solução apontava para a flexibilização e que talvez já
antevisse uma lógica que mais tarde ou mais cedo resultaria na convergência de
que agora se fala para o futuro CPTA.
Contudo esta facilidade de lhe chamar lógica de flexibilidade
não viria tão fácil para outros. A Bipolaridade, ainda que imperfeita, traria
algumas dificuldades que alguns defendiam, como Vasco Pereira da Silva, ser em
sede de Contencioso de plena jurisdição, desnecessária. Por seu
lado, o Professor Aroso de Almeida argumenta que a dualidade embora de facto
concretizada, via a sua coerência ameaçada por outras configurações que por
opção do legislador escaparam a essa lógica – no seu entendimento, a tramitação
do Art.78º, das AAE seria não um legado do recurso contencioso de anulação como
tantos outros tinham defendido antes mas sim uma adaptação dos aspetos
fundamentais do Processo Civil. Isto, o Professor justificava com a possibilidade
de cumulação do já referido art.5º, e com a AAE ser desenhada com passibilidade
de dar resposta a quaisquer litígios que se inscrevam no âmbito da jurisdição
administrativa, levando à inevitável questão do “porque não a uniformização?”
A opção pela unicidade no início de 2000 trazia uma grande
dificuldade. Que tramitação se aplicaria, nesta Ação administrativa não urgente
única? Empregar-se ia em todos os processos a tramitação do processo civil de
declaração? Mas e o que fazer com a denso acumular de soluções que ao longo dos
anos se tinha dado quanto ao Recurso Contencioso? Para não referir o tratamento
especificamente administrativo que alguns processos precisariam, sempre. E a
radical privatização do Contencioso Administrativo, também estava fora de
questão. Por outro lado fechar-se ia a porta ao Processo Civil cuja
flexibilidade facilitava no dirimir de litígios não decorrentes de
manifestações unilaterais de poder administrativo?
Uma terceira solução em abstrato, seria conceber de raiz um
novo processo administrativo polivalente quanto as causas de pedir e pedidos.
Mas não havia trabalho teórico e muito menos jurisprudencial em que esta grande
modernização se pudesse apoiar, e não fazia sentido à data estar a pôr de lado
uma longa praxis de conjugação de legislação de contencioso em constante auto-aperfeiçoamento com o processo civil de declaração.
A solução do legislador ficou-se por esta bilateralidade
imperfeita de flexibilização e interconexão mas que não era nem o ideal, nem o
desejado. Na verdade nos moldes ideais cabia apenas e só a uniformização mas a
prática e a jurisprudência não o podiam aceitar imediatamente
.
.
Dez anos depois a questão impõe-se, continuará fazer
sentido? Certamente que não.
Os tempos mudaram e observa-se uma contínua e acentuada
privatização do direito administrativo e também uma cada vez mais intensa
tutela dos direitos dos particulares a que hoje já não se pode ficar
indiferente – é estranho que por exemplo matéria de contratos e atos
administrativos sejam tratados em sede processual diferentes quando cada vez
mais andam "de mão dada", em que a comunicação
interdisciplinar e fundamental.
Nova Reforma do Contencioso
Cumpre, contudo, ainda averiguar esta uniformidade projetada
para a nova versão do CPTA. Em que medida esta uniformização se concretiza, que processos engloba? Que tramitação se lhe aplica? É
esta unipolaridade rígida ou atenuada? E quais os benefícios que traz?
Ora de facto a nova ação administrativa passa a ser o único
meio processual não urgente para dirimir litígios jurídicos administrativos. Ela
aglutina as matérias correspondentes ao âmbito tanto da AAE como da AAC. Já
antes se disse que a bipolaridade do regime atual é imperfeita, mas o professor
Sérvulo Correia também define a Unipolaridade como atenuada. Isto porque um
regime totalmente unitário seria impossível, e muitas das características que
tornavam a AAE flexível estão agora presentes também na ação administrativa
única.
É que a relativa especificidade que marcava os processos
dentro das AAE tem de ser mantida e é necessária! É disto exemplo a continuidade
da subdivisões da AAE como as elencadas no ART.46º/nrº2 do atual CPTA, agora
como modalidades da Acão Administrativa única… e não é só uma questão de
estrutura mas mais que isso é uma questão de regime requisitos e formalidades, isto porque a especificidade administrativa destes são imprescindíveis a determinados processos. Pende-se assim para a separação tendencial de regimes
processuais quando se trate de litigar aspetos manifestantes de exercício do
poder administrativo ou não. O que se passa é portanto que a dualidade se
transfere das duas ações administrativas atualmente existentes para o seio de
uma única.
Resta saber então o regime de tramitação pelo qual se optou
e se foi possível articular as soluções já anteriormente existentes com a Acão
Administrativa única. Eis que nos deparamos com uma inovação insólita no modo de
construir o pendor unitarista – em vez de contar apenas e somente ora com o
processo civil declarativo ora com o regime desenvolvido a partir de soluções
tradicionalmente administrativas o legislador desta vez parece optar por uma “minuciosa e ponderada urdidura de fios
normativos advenientes ora da anterior versão do CPTA ora da renovada versão do
CPC” nas palavras de Sérvulo Correia. Assim aposta-se numa unicidade formal
que sem duvida caracteriza o novo meio processual não urgente mas que não se
pode escapar a inevitável e engenhosa combinação de regras provenientes ora da
marcha processual do atual CPTA ora da marcha do novo CPC o que mais uma vez
confirma aquilo que se veio dizendo ate agora, que a especificidade não pode
ser afastada e posta de lado, ela e necessária e não se podem tratar os
processos que lhe correspondem como se tratam todos os outros.
Demonstra-se assim que tanto o carácter imperfeito da bilateralidade como o atenuado da unipolaridade era no mínimo
inevitável, uma utopia.
Para terminar e seguindo a linha de pensamento do Prof. Sérvulo Correia pode de novo analisar-se a questão do papel da bipolaridade.
Perguntar-se-ão alguns se valeram a pena dez anos desta dualidade processual
imperfeita, quando a solução da unipolaridade tantas vezes considerada por alguns
se afigurava a mais correta e desejada no contexto constitucional e evolutivo
do direito administrativo.
Mas sem a bipolaridade atenuada, na qual o legislador
inseria variadíssimos instrumentos de interconexão como a permeabilidade ao
processo civil e sobretudo com a cumulação de pedidos com formas processuais
diferentes, não teria sido possível experimentar gradualmente a composição de
processos respeitantes a situações jurídicas não emergentes do exercício
unilateral do poder administrativo no âmbito de meios processuais especificamente
administrativos.
A consagração da bipolaridade pode ter parecido a alguns,
como para o professor Vasco Pereira da Silva constituída sob “pré-conceitos” de
natureza substantiva ainda baseados nos traumas de infância do direito
administrativo e não justificada por razoes de verdadeira natureza processual.
Mas na verdade esta introdução da bipolaridade sondava a praxis jurisprudencial
para a indicação dos requisitos e limites para uma possível unificação que se vê
dez anos depois quase concretizada.
Bibliografia:
AROSO DE ALMEIDA, MARIO –
“Manual de processo administrativo”, Reimpressão 2013, Almedina
PEREIRA DA SILVA, VASCO – “o contencioso administrativo no
divã da psicanálise: ensaio sobre as ações no novo processo administrativo” 2ª
edição Almedina, 2009
CORREIA, SÉRVULO – “Da ação administrativa especial à nova
ação administrativa”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 106
Visto.
ResponderEliminar