sábado, 1 de novembro de 2014

A Legitimidade Activa do Ministério Público no Contencioso Administrativo: o regime actual e o regime do futuro CPTA

Atendendo ao momento actual do nosso Contencioso Administrativo, em que se prepara para ser aprovado um novo CPTA e um novo ETAF, vamos centrar este post sobre um tema que nos suscitou algum interesse no âmbito desta temática: a legitimidade activa do Ministério Público no actual CPTA e, também, as alterações que a esse respeito serão levadas a cabo, se este anteprojecto de Lei for aprovado pela Assembleia da Republica.

Importa antes dar uma vista geral sobre o regime do actual CPTA e depois olharmos um pouco para aquilo que a proposta de lei consagrará, se for aprovada.

Temos que, nos termos do actual Código de Processo dos Tribunais Administrativos[1], resultado da reforma do Contencioso Administrativo Português de 2002-2004, em que levou à aprovação de um novo CPTA e de um novo ETAF (o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[2]), a matéria da legitimidade processual encontra-se prevista no Capítulo II – Das Partes – artigos 9.º e 10.º do CPTA. Para aquilo que nos interessa, a matéria da legitimidade activa vem regulada no art.º 9.º do CPTA (legitimidade activa geral) e, também, alguns preceitos espalhados pelo Código, como sejam, a legitimidade activa processual em matéria de Contratos (art.º 40.º do CPTA), em matéria de impugnação de actos administrativos, na Subsecção II, Secção I Capítulo II (art.º 55.º do CPTA), em matéria de condenação à prática de acto devido, Secção II do Capítulo II (art.º 68.º do CPTA) e ainda o art.º 77.º do CPTA, relativo à impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão, na Secção III do Capítulo II. Temos então que a matéria da legitimidade processual (quer activa quer passiva) tem o seu regime geral plasmado nos art.º 9.º e 10.º do CPTA, mas o nosso CPTA contém disposições várias espalhadas pelo diploma, relativamente às matérias elencadas supra.
Analisando agora o regime consagrado no nosso CPTA, temos que a legitimidade activa, aquela sobre a qual nos debruçaremos, está bem patente no art.º 9.º, em que nos termos do n.º 1 está a concepção subjectivista, em que as partes são consideradas como tal conforme a alegação feita pelo autor na Petição Inicial: ou seja, nos termos do n.º 1 do art.º 9.º, o autor é considerado como parte legítima a partir do momento em que alegue uma relação material controvertida contra outro. Assim, tanto autor como réu são partes legítimas a partir da alegação, pelo autor, de que há uma relação material controvertida, vertida na Petição Inicial apresentada pelo Autor. Fundamentalmente, este n.º1 do art.º9 do CPTA é um mecanismo conferido aos particulares para demandarem a Administração, quando surja um litígio entre esse particular e a Administração, pelo que este número do art.º 9.º está pensado para essas situações. Agora, quanto à legitimidade activa do Ministério Público, nos termos do art.º 9.º do CPTA, interessa-nos mais o disposto no seu n.º 2.
Quanto à legitimidade activa do MP neste Código, ela aparece-nos no n.º 2 do art.º 9.º, em que é conferida a legitimidade activa do MP para propor acções nos Tribunais Administrativos, quando estas visem a defesa de «(…) valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais», independentemente de ter um interesse pessoal na demanda. Ou seja, o MP tem sempre legitimidade activa para porpor acções nos Tribunais Administrativos, sem ser necessária prova de ter ou não interesse directo na demanda. Este mecanismo conferido ao MP, que é o mesmo que é conferido a outras entidades elencadas no  n.º 2  do art.º  9.º, vem-nos dizer apenas que, qualquer daquelas entidades (onde se encaixa o Ministério Público) tem uma legitimidade activa (a de poder propor acções) nos Tribunais Admnistrativos, sendo que poderá fazê-lo se forem acções relativas a algumas das matérias elencadas naquele n.º2 do art.º 9.º do CPTA. Não há nenhuma ordem hierárquica das entidades elencadas neste artigo, pelo que qualquer delas poderá propor aquelas acções, e o Ministério Público é apenas mais uma de entre as demais referidas no art.º 9.º, n.º2. Mas atendendo à função de protecção que o Ministério Público pode desempenhar junto dos cidadãos, a possibilidade de o MP poder porpor acções sobre aquelas matérias faz pensar que, afinal, a função do MP não é apenas uma função entre as demais, mas sim uma função mais forte, porque o MP poderá defender aqueles interesses dos particulares naquelas matérias através do mecanismo da Acção Popular, em que o MP vem defender interesses difusos, ou seja, são interesses que não são meramente particulares, mas são de tal modo gerais que visam beneficiar um sem número de pessoas, pelo que se compreende a escolha do MP para porpor acções sobre estas matérias enumeradas no n.º 2 do art.º 9.º do CPTA. Podemos pensar que aqui há uma legitimidade sem “rosto”, ou seja, uma legitimidade activa que é conferida ao MP para poder defender os interesses dos particulares, sobre aquelas matérias, desde que essas acções visem pugnar pelo bom funcionamento da Administração, quando estão em causa direitos e valores legalmente protegidos[3].
No capítulo da Acção Administrativa Especial[4], temos que o art.º 55.º do CPTA trata da legitimidade activa para impugnação de actos administrativos. Não tratando da al.a), do n.º1 do art.º55.º do CPTA, que confere legitimidade para impugnar actos administrativos a quem tenha um interesse directo e pessoal, importa-nos falar da a.b), do n.º1 do art.º 55.º deste Código. Segundo esta alínea, o Ministério Público tem legitimidade activa para impugnação de actos administrativos. Esta legitimidade activa conferida ao MP para impugnar actos administrativos, sem qualquer interesse directo e pessoal para tal, é-lhe conferida esta mesma legitimidade, não na qualidade de “advogado do Estado”, mas sim na qualidade defensor público da Legalidade Administrativa, através da proposição da chamada Acção Pública[5]. Assim, se o Governo quiser impugnar um acto administrativo, deve constituir um advogado, nos termos do art.º11.º, n.º2 do CPTA, e não através do mecanismo previsto no art.º55.º do Código. Devemos conjugar este art.º 55.º com o disposto no art.º 51.º do ETAF, em que compete ao «Ministério Público (…) defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público (…)». Assim, deve o Ministério Público, sempre que detecte que um acto administrativo é ilegal, propor uma acção de impugnação, sem restrições, para repor a legalidade administrativa. Neste aspecto, temos que a competência para impugnar o acto administrativo, dentro do MP, compete ao procurador que o represente junto do tribunal competente, de acordo com o art.º 53.º do Estatuto do Ministério Público.
Ainda em relação a este ponto, no CPTA anotado, os autores referem um Relatório sobre a Justiça Administrativa, publicado na Reforma do Contencioso Administrativo, vol. II, da autoria de Vital Moreira e Catarina Sarmento e Castro[6], em que estes autores referem um Despacho de 1999, da Procuradoria-Geral da República, em que se refere que a impugnação de actos administrativos pelo MP, junto dos tribunais administrativos, «só é obrigatória nos casos de actos nulos, de actos que violem direitos fundamentais ou interesses difusos ou colectivos ou que violem os princípios da justiça ou imparcialidade». Atentando ao disposto no art.º 55.º, n.º1, al.b) do CPTA, esta disposição lega não impõe qualquer limitação quanto à impugnação de actos administrativos pelo MP. No entanto, o disposto neste artigo resultou da reforma do Contencioso Administrativo de 2002-2004, visando restringir a legitimidade do MP nas acções Contenciosas, sendo que, com a reforma que se avizinha, também o MP verá a sua legitimidade activa ainda mais restringida.
Ainda no âmbito desta temática, o art.º 68.º do CPTA trata da legitimidade para acções de condenação de Administração à prática de Actos Administrativos devidos[7]. Assim, nos termos do art.º 68.º do CPTA, o MP tem legitimidade activa para a condenação à prática de um acto devido à Administração, desde que esse dever de prática do acto derive da Lei, e ainda esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público ou ainda de quaisquer valores referidos no n.º2 do art.º 9.º (art.º 68.º, n.º 1, al.c) do CPTA). Aqui, confrontando a legitimidade conferida nos termos do art.º55, esta intervenção do MP para o pedido à Administração para praticar um acto administrativo devido sofre restrições[8], que são aquelas elencadas na al.c) do n.º1 do art.º 68.º.. Assim, ao contrário do que dispõe o art.º 55.º, o art.º 68.º  apenas dispõe da legitimidade do MP para propor acções de condenação da administração à prática de actos administrativo, através da acção pública, nos casos de omissão ilegal, pela Administração, quando tal dever resulta directamente da Lei[9]. No entanto, o MP não precisa de apresentar um requerimento dirigido ao órgão competente, e pode propor a acção imediatamente, desde que se verifique que a Administração não cumpriu o seu dever legal de praticar um acto administrativo. Mas, se atentarmos aos pressupostos de proposição de uma acção de condenação da Administração à prática de um acto devido, temos que o MP tem legitimidade para propor a acção, nos termos do art.º 68.º, se estiver em causa a ofensa de direitos fundamentais, ou interesses públicos especialmente relevantes, ou ainda valores e bens a que se refere o n.º 2 do art.º 9.º do CPTA. Assim, compreendemos que o MP não tem uma legitimidade sem limites para intimar a Administração a praticar um acto administrativo. Só o poderá fazer, se estiver em causa alguma das situações elencadas na al.c) do n.º1 do art.º 68.º do CPTA, em que não se institui que o MP seja um «guardião contra toda e qualquer situação de incumprimento ilegal de deveres de actuação jurídica que a lei imponha aos órgãos da Administração[10]». Assim, a partir destes elementos, concluímos que o MP não tem um exclusivo poder de exigir à Administração que pratique os actos administrativos devidos, só o podendo fazer, nos termos do art.º 68.º do CPTA, se tal resultar da violação da Lei, ou da violação de direitos fundamentais dos particulares, ou de interesses públicos especialmente relevantes, ou ainda de valores e bens, referidos no art.º 9.º, n.º 2 do CPTA.

O regime do Anteprojecto do novo CPTA.
1.
Nos termos do novo art.º 9.º do CPTA (aquele que faz parte do anteprojecto de revisão deste código), temos que o n.º 2, que confere legitimidade ao Ministério Público, entre outras entidades, «(…) para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais». Atentando ao disposto no actual n.º 2 do art.º 9.º a única diferença que salta à vista é a parte final deste número, em que têm legitimidade para “promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais”, que não consta da versão actual. Continua-se a permitir ao MP a proposição de acções (através da Acção Pública) nos temas elencados neste artigo, apenas se adicionando a competência, também atribuída ao MP, para promover a execução de decisões jurisdicionais. Assim, quanto a esta legitimidade activa geral, não vejo qualquer alteração em relação ao texto actual, e quanto às competências atribuídas, quer ao MP, quer às outras entidades que podem propor acções, segundo o disposto neste artigo do anteprojecto. Aguardamos pela aprovação do texto final, para vermos quais os resultados desta proposta feita pela Comissão de Revisão do Contencioso Administrativo.
2.
Relativamente ao art.º 55.º do anteprojecto de revisão do nosso Contencioso Administrativo, temos que a legitimidade activa do MP para impugnação de actos administrativos só é conferida «em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º», aqui podemos encontrar uma importante restrição face ao texto actual do CPTA. Enquanto neste o art.º 55.º, n.º 1, a.b) nos diz que o MP tem legitimidade activa para impugnar actos administrativos, sem quaisquer restrições, no projecto de revisão do CPTA, o art.º 55.º, n.º1 do CPTA, a al.b), diz-nos que o MP tem legimidade para a impugnação de actos administrativos se estiverem em causa direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores elencados no n.º 2 do art.º 9.º do CPTA. Aqui quis-se restringir a legitimidade do MP para a impugnação de actos administrativos praticados pela Administração na senda do que já acontece no actual art.º 68.º do CPTA, pelo que é uma das importantes alterações, quanto à legitimidade activa do Ministério Público no nosso Contencioso Administrativo. Da leitura desta proposta de alteração ao CPTA, podemos concluir que o objectivo desta reforma, quanto a este artigo em específico, é o de restringir a actuação do MP no nosso Processo Administrativo, em que se visa criar mais pressupostos de previsão para uma acção de impugnação de actos administrativos. Pensamos que esta alteração vai no sentido correcto, se se quiser que a competência do MP no nosso Contencioso deixe de ser tão interventivo. Assim, pensamos que esta alteração poderá mudar o paradigma de actuação do MP nesta área, em que este órgão actua sem qualquer restrição, e assim vai ao encontro do que aquilo já acontece quanto à condenação da Administração à prática de actos administrativos devidos, do actual art.º 68.º.
3.
A proposta de alteração deste artigo, quanto à legitimidade do MP para a proposição de uma acção de exigência da prática de actos administrativos devidos, apenas acrescenta a não necessidade, por parte deste órgão, de apresentação de um requerimento, pedindo à Administração que pratique um acto administrativo, quando imposto por Lei e ainda estejam em causa ofensas de direitos fundamentais dos particulares, de interesses públicos especialmente relevantes ou de quaisquer outros valores e bens referidos no n.º 2 do art.º 9.º do CPTA. Assim, podemos concluir que face a este artigo, o mecanismo de exigência, por parte do MP, para a prática de actos administrativos, pela Administração, pode ser exigido, sem necessidade de um requerimento, dirigido pelo órgão, à entidade competente para a prática desse acto. Aqui há então um paralelismo de situações, quanto ao art.º 55.º do CPTA, no projecto de revisão, em que ambas as legitimidades, por parte do MP derivam, sem necessidade de interposição de requerimentos pelo órgão em causa à Administração para que tal pudesse ser efectivado. Assim, penso que esta não exigência, elaborada pelo Legislador ordinário, visa apenas “descomplicar” no trabalho do MP para a adopção de medidas para intimar a Administração a praticar os actos que, por imposição legal, ou quando esteja em causa a violação de bens e valores constitucionalmente protegidos dos particulares, ou ainda a violação de direitos fundamentais e de interesses públicos, pelo que o MP tem autonomia para realizar todas as diligências necessárias para a Administração actuar do modo correcto e exigido.

Conclusões
A proposta de alteração do nosso Contencioso Administrativo visa, sobretudo, simplificar aquilo que ainda não fora melhorado pela reforma de 2002-2004, que culminou com os textos actuais do CPTA e do ETAF. Pensamos que, na matéria que nos ocupou este estudo, a legitimidade activa do Ministério Público sairá um pouco mais restringida na sua globalidade, pelo facto de o MP já não poder propor acções contra a Administração, sem quaisquer restrições, no âmbito da impugnação de actos administrativos. Também pensamos que a legitimidade activa, vertida no art.º9.º, n.º2 da proposta de alteração do CPTA, apenas visará ampliar essa legitimidade, apenas no caso de promoção de execuções das decisões jurisdicionais. Assim, penso que esta é apenas a única matéria em que o MP verá a sua legitimidade para propor acções ampliada, uma vez que a legitimidade activa, no âmbito de acções de impugnação de actos administrativos e de condenação da Administração à prática de actos administrativos aparece “uniformizada”. Pensamos, aliás, que essa é a grande alteração, em termos de legitimidade activa do MP no nosso Contencioso, porque visou restringir a acção do MP em termos de impugnação de actos administrativos ao regime  disposto no art.º 68.º, impondo a verificação de requisitos, coisa que hoje não acontece, uma vez que o MP pode, a qualquer momento, e sem verificação de requisitos, impugnar actos administrativos da Administração. Aproximando os dois regimes, penso que é uma boa solução, porque não deixa, nas mãos do MP, uma legitimidade absoluta para a impugnação desses actos da Administração, prevendo os casos em que tal poderá acontecer.
Esperamos pelo texto final, para vermos quais as opções consagradas pelo nosso Legislador.


Dahir Bauer
Aluno n.º 20596


[1] A Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro.
[2] A Lei n.º13/2002, de 19 de Fevereiro, entretanto alterada pela Lei n.º4-A/2003, de 19 de Fevereiro, pela Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho.
[3] Ver MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo dos Tribunais Administrativos, Volume I e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, 2006, Reimpressão da edição de Novembro de 2004, pág.156.
[4] Título III do Capítulo IV – Dos Actos Processuais do CPTA.
[5] Ver MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., pág.365.
[6] Ver MÁRIO ESTEVES DE OLVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., pág.365.
[7] Secção II do Capítulo II.
[8] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão da Edição de 2010, pág. 246.
[9] Ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, ob. cit., e também MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., pág. 424.
[10] Ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, ob. cit., pág. 247.

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