domingo, 2 de novembro de 2014

Dos poderes de pronúncia do juiz administrativo, Análise crítica

Dos poderes de pronúncia do juiz administrativo
Análise crítica


No concernente ao tema dos poderes de pronúncia do juiz administrativo, como refere ANTÓNIO CADILHA e nos parece indicado para começar a exposição do tema, estamos numa zona de ponto de equilíbrio entre o principio da separação de poderes (artigo 114º da CRP), o qual exige que a cada poder estadual caiba um domínio funcional ou de competências reservado e, por outro lado, os princípios da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva (presente nos artigos 20º e 268º/4 do mesmo diploma), que apontam para um aprofundamento do papel de controlo dos tribunais na tutela das posições jurídicas dos cidadãos perante a função estadual predominantemente confiada ao poder executivo[1].
A esta possibilidade de condenação judicial da Administração Pública na prática de um acto administrativo foi inicialmente, como nos esclarece JOÃO CAUPERS, levantado o impedimento associado ao principio da separação de poderes, sendo inconcebível qualquer imposição dos órgãos do contencioso administrativo à Administração Pública, não podendo aqueles interferir sob qualquer forma sobre a actividade jurídica da Administração Pública[2]. Contudo, tal perspectiva veio sendo abandonada, firmando-se antes o entendimento de que “o ponto de intersecção entre separação de poderes e justiça administrativa não reside na forma jurídica, mas antes no conteúdo material de uma possível injunção”[3]. Como realça SÉRVULO CORREIA, o que há que determinar é o plano a partir do qual a injunção administrativa deixa de revelar da função jurisdicional[4]. Parece, seguindo esta linha de raciocínio, que, num sistema em que o papel do juiz administrativo é o de velar pela conformidade das condutas e das situações da Administração com os parâmetros jurídicos, o que importa é, em boa verdade, o binómio clássico entre questões de direito e questões de oportunidade, entre dizer o direito e apreciar a oportunidade. Nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, o CPTA estabeleceu um princípio de plena jurisdição dos tribunais administrativos, desde que esteja em causa “a estrita conformidade da actuação da Administração com as normas e os princípios jurídicos”[5].
Não obstante a aparência de se ter resolvido um problema clássico de Direito Administrativo e Contencioso Administrativo, não nos podemos recusar a aceitar a realidade de existir toda uma “zona cinzenta”, na qual a fronteira entre uma simples imposição do respeito pela legalidade ou o controlo da conveniência ou oportunidade da actuação administrativa é extremamente ténue[6] [7]. Como tal, na análise do artigo 71º do CPTA nunca podemos esquecer o que o artigo 3º do mesmo diploma prescreve: “os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação”. Não parecem, como tal, de aceitar, neste ponto, as asserções de RUI MACHETE, quando o autor defende que se abandone a óptica da separação de poderes para preferir uma abordagem que, sem ideias pré-estabelecidas sobre a natureza material de cada função do Estado e dos seus actos, privilegie a interpretação dos preceitos constitucionais à da sua enumeração dos órgãos e das suas competências[8].
Com base nas premissas anteriormente expostas, cabe agora analisar o artigo 71º do nosso CPTA. Do seu nº1 podemos retirar que mesmo que tenha existido um indeferimento liminar ou uma pura e simples omissão da Administração perante um concreto requerimento que lhe tenha sido apresentado, e que, portanto, esta não tenha desenvolvido quaisquer trâmites no sentido de analisar a solicitação efectuada, o tribunal, quando aprecia um pedido de condenação à prática de acto devido, não se pode limitar a constatar a invalidade da conduta administrativa e remeter novamente o assunto à Administração. Tem, antes, o dever de, no âmbito de uma acção destinada a assegurar a realização do direito de um particular à prática de um acto que lhe é legalmente devido, conhecer do fundo da causa e pronunciar-se sobre o direito alegado, obrigando a Administração a praticar o acto requerido se aquele direito efectivamente existir[9]. Contudo, parece que, desde logo, este preceito levanta o problema de saber se pode o juiz levar a cabo o conjunto de diligências de prova necessárias a apurar se se encontram preenchidos os pressupostos fácticos do direito invocado pelo demandante. Não se pode perder de vista, na análise desta problemática, que estamos, ainda, só a tratar de situações de competência vinculada da Administração Pública. Isto é, o tribunal apenas poderá condenar a Administração com base neste preceito, na prática de um acto administrativo com um conteúdo determinado, quando estejam reunidos os elementos de direito e de facto que permitam ao juiz concretizar esse conteúdo, sem violação da esfera jurídica de actuação da Administração[10] [11]. Como tal, não estando em causa qualquer intromissão do Tribunal Administrativo na esfera própria da actuação da Administração, o problema do âmbito dos poderes instrutórios do juiz nessas matérias acaba por ser relegado para um segundo plano de importância. Até porque esta é a interpretação que, impondo ao Tribunal envidar todos os esforços (incluindo instrutórios), na medida do juridicamente possível, para conseguir reunir as condições necessárias à pronúncia de uma condenação em sentido estrito sobre o perdido formulado, será aquela que melhor servirá a realização do direito alegado pelo demandante, garantindo um respeito mais eficaz da garantia da tutela jurisdicional efectiva dos particulares, segundo pensamos. Também ANTÓNIO CADILHA refere, quanto a esta temática, que do princípio da separação de poderes não se pode retirar a ilação de que a Administração tenha o “direito de primazia” por forma a ser ela a adoptar a primeira decisão conformadora de uma situação jurídico-administrativa[12].
Contudo, será admissível o Tribunal exercer de forma ilimitada os seus poderes instrutórios em todas as situações, mesmo sendo elas de cariz vinculado e não comportando discricionariedade (não existindo, de tal forma, intromissão na esfera do poder administrativo)? Será razoável manter esta posição em nome de uma pretensa “tutela mais eficaz dos particulares», mesmo naquelas situações em que os Tribunais Administrativos, muito pior preparados, acabam por proporcionar exactamente o inverso (decisões de duvidosa qualidade, num período de tempo muito mais alargado), assim deteriorando a protecção jurisdicional dos interessados?
Parece-nos que naqueles casos em que, no âmbito do procedimento administrativo se prevê a intervenção de um órgão com uma competência técnica especifica para avaliar determinados requerimentos apresentados por particulares[13], e que, à partida, será bastante mais qualificado para a análise das situações apresentadas, permitindo diminuir, a priori, a margem de erro e, por essa forma garantir uma maior protecção dos particulares. Também com este entendimento encontramos COLAÇO ANTUNES que defende que mesmo aquando da presença de actos vinculados “sempre que se preveja a obrigatoriedade de um procedimento administrativo como pressuposto de legitimidade do acto, o processo e o seu juiz não poderão substituir o procedimento administrativo especial previsto e, consequentemente, não poderá ser pronunciada uma sentença em sentido estrito”[14]. Ilustrativa desta ideia é a conclusão de HUERGO LORA quando refere que quando estejam em causa procedimento relativamente complexos, a genérica substituição do tribunal à Administração poderia conduzir a uma deficiente tramitação dos procedimentos, uma vez que é a Administração que está preparada e organizada para levar a cabo esta tarefa, além disso, aumentaria a saturação da jurisdição administrativa e provocaria graves desigualdades entre os cidadãos, uns submetidos à Administração e às suas pautas de actuação e outros a essa espécie de “Administração de excepção” em que se converteriam os Tribunais Administrativos[15]. Repare-se que poderemos incorrer no paradoxo de a procura judicial do “assunto maduro para julgamento”[16] não ser a solução, que sempre, satisfaz melhor os interesses dos particulares, pois atente-se que um excesso de controlo pode levar a que o juiz, ao querer “fazer tudo”, corra o risco de não fazer nada em definitivo[17]. Como tal, defende-se que nestes casos a Administração volte a tramitar o procedimento administrativo em causa, mesmo aquando do exercício de competências vinculadas, devendo o Tribunal devolver o processo a esta, mediante uma simples sentença indicativa, e não já em sentido estrito (decidindo o fundo da causa).
Não obstante o anteriormente explanado, os maiores problemas colocam-se quanto ao nº2 do artigo 71º do CPTA. Quando se tratar de discutir o alcance da condenação à prática de acto devido em caso de discricionariedade da Administração, o que importa discutir não será tanto a extensão dos poderes instrutórios do juiz, mas sim o próprio âmbito dos poderes de pronuncia do tribunal, isto é, sobre as situações em que será possível ao tribunal condenar a Administração a praticar um acto administrativo com um conteúdo determinado, não obstante existir, em abstracto, um poder discricionário. Prescreve o preceito que o juiz não poderá determinar o conteúdo do acto a praticar pela Administração quando a emissão do mesmo “envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível”. Como realça ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, o CPTA vem permitir que, ainda que a prática do acto em causa envolva a formulação de “valorações próprias” da actividade administrativa, poderá ser proferida uma sentença condenatória em sentido estrito, quando da análise do caso concreto, seja possível concluir que apenas resta à Administração, uma solução legalmente possível, possibilitada pela “redução da discricionariedade a zero”[18]. Quando se deve, como tal, considerar ou identificar apenas uma solução como legalmente possível, apesar de a emissão do acto pretendido implicar, em abstracto, a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, tendo como consequência a possibilidade de o juiz poder proferir uma sentença de condenação em sentido estrito, e não uma mera sentença indicativa?
Esta circunstância tem sido analisada, sobretudo, quanto a situações de actuação da Administração de polícia. Aquando da ocorrência de uma conduta ilegal, e quando a Administração é informada da mesma, não há nada que obrigue esta última a intervir para restabelecer a legalidade, pelo facto de a Administração dispor de uma margem de discricionariedade que lhe permite distribuir os meios limitados de que dispõe em função da relevância das distintas condutas ilegais ou de outras circunstâncias que deva ter em conta de acordo com a legislação aplicável. Contudo, tem-se entendido[19] que apesar da discricionariedade de actuação abstractamente reconhecida à Administração, a configuração dos interesses em causa no caso concreto pode levar à conclusão de que esta ultima não restava outra opção que não a de intervir para reparar a ilegalidade que se estava a cometer. Nestas situações estavam, em geral, envolvidos direitos fundamentais como o direito à vida e à saúde. Além deste tipo de ocasiões mais ligadas à tutela de direitos fundamentais, tem entendido a doutrina, tendo como expoente MARIO AROSO DE ALMEIDA[20], que sempre que o respeito pelas normas ou princípios violados apenas consinta que a Administração adopte um determinado tipo de decisão, também estaremos perante uma situação de redução da discricionariedade a zero. Também MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATO parecem seguir este entendimento[21].
Outras situações de redução da discricionariedade a zero têm sido apontadas pela doutrina. Exemplo disso é o daquelas situações em que, havendo mais do que uma opção de escolha por parte da Administração, esta tenha procedido a uma hierarquização das diversas opções à sua disposição e, verificando-se a ilegalidade da primeira opção, impor-se ao tribunal que recorra à classificação já efectuada no momento anterior do procedimento administrativo e, sem necessidade de ter que devolver o assunto à Administração, condenar esta última a resolver a situação em favor do segundo classificado[22], na medida em que ou a escolha já foi realizada, ou porque a avaliação subjectiva já teve lugar no decurso da fase instrutória do procedimento administrativo, ou ainda porque a concreta circunstância do caso elimina a possibilidade de escolha. Percebe-se, de forma clara, que já foi ultrapassado o momento da vertente discricionária da competência, apenas tendo obstado em concreto ao deferimento do pedido do particular uma errónea e ulterior convicção do autor do acto impugnado de que não estaria preenchido um requisito ou verificado um pressuposto legalmente previsto.
Contudo, uma vertente, diga-se minoritária[23], da doutrina tem interpretado este instituto de forma diferente. O que está em causa quando um principio, por exemplo, obriga a Administração, na situação concreta, a praticar um acto com um determinado conteúdo, estamos, não perante uma situação de redução da discricionariedade a zero, mas antes perante um poder que, por interpretação das normas aplicáveis, se revela, afinal, como um poder vinculado. Como refere SÉRVULO CORREIA, do que verdadeiramente se trataria seria da verificação da existência de limites internos da discricionariedade, de factores que condicionam a própria escolha entre as várias atitudes abstractamente possíveis, fazendo com que algumas deixem de o ser nas circunstâncias concretas, o que reconduziria o problema ao exercício de um poder meramente vinculado.[24]
Quanto a este ponto, parece ser de seguir a posição de ANTÓNIO CADILHA, quando refere que o instituto da redução só pode actuar quando, no caso contrário, não seria cumprido o dever de protecção jurídico-constitucional na sua medida mínima exigível, consubstanciando esta medida a dignidade da pessoa humana[25].
Cabe, neste momento, reflectir a que conclusões devemos chegar. Importa, desde logo, recordar, como com mestria nos ensina NUNO PIÇARRA[26], que a Administração reúne condições únicas para operar a conformação da realidade social à luz da prossecução dos interesses públicos que constituem as suas atribuições, na medida em que é portadora de uma grande amplitude de informação, de um conhecimento técnico-pericial objectivo e de uma complexa estrutura organizativa. Por outro lado, integram o perfil funcional da Administração a legitimidade democrática e a responsabilidade politica, que não atinge os juízes dos tribunais administrativos.
ANTÓNIO CADILHA defende que o juiz deverá adoptar um método de controlo negativo da aplicação dos princípios constantes do artigo 266º/2 da CRP[27], parecendo que, no entender do autor, estariamos perante testes de juridicidade a que a decisão se deve submeter e não critérios directos de conduta. Como tal, não indicam positivamente qual a solução que deve ser adoptada, antes projectando um efeito preclusivo sobre o subsequente reexercicio do poder por parte da Administração, por forma a que esta não reincida nos vícios anteriormente cometidos. Já VASCO PEREIRA DA SILVA afirma que os poderes de substituição do juiz devem consubstanciar-se em indicar a “forma correcta” do exercício do poder discricionário, no caso concreto, estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão, adoptando como base as sentenças indicativas do direito alemão[28].
Segundo nos parece, é de contestar este último ponto de vista. Desde logo, tendo em conta o principio da separação de poderes, na medida em que compromete relevantemente a autonomia da função administrativa e a sua responsabilidade própria, num domínio em que o tribunal não pode assumir a responsabilidade pelas decisões ou pelos seus resultados nem em termos políticos nem em termos de oportunidade ou da competência técnica que são imprescindíveis para essas decisões discricionárias. Quando se refere que o juiz apenas se pronuncia sobre a envolvência jurídica, parece algo paradoxal que se possa vir posteriormente dizer que o juiz pode indicar o que consideraria ser uma decisão respeitadora ou violadora dessas exigências legais. Na verdade, indicação não seria mais do que um “mero repetir” da lei e pouco mais quanto à aplicação dos princípios gerais de direito administrativo. Se assim não se entender, tal implica considerar que estaríamos antes perante o determinar do conteúdo concreto de uma decisão administrativa, o que aparente ser bastante questionável constitucionalmente. Esta concepção de aumentar desmesuradamente os poderes jurisdicionais parece esquecer a famosa conclusão de ROGÉRIO SOARES quando este autor mencionava que quando se falava dos tribunais como “paladinos de juridicidade” em defesa dos cidadãos, a verdade é que se bem analisarmos essa questão de perto, logo percebemos que a sua legitimação democrática num Estado de Direito é praticamente nula[29]. Não se deveria somente “temer” o arbítrio administrativo, mas também, e sobretudo, o arbítrio a posteriori do juiz. Além da disfunção de responsabilidade que existiria. Decidir-se-ia numa sede (o tribunal) e ser-se-ia responsável numa outra (a autoridade administrativa), que, se bem se atentar, apenas teria cumprido as directivas de juridicidade ou vinculações fixadas pelo juiz. Em suma, a falta de competência técnica necessária, a inexistência de responsabilidade e a desvirtuação no princípio da separação de poderes desaconselham qualquer tomada de posição que vele pela intromissão, por mínima que seja, do poder jurisdicional na função administrativa.
Além do mais, não nos devemos esquecer[30] que também a aplicação dos princípios jurídicos gerais implica uma discricionariedade, em cada situação de aplicação, não sendo o resultado da mesma certo, liquido ou objectivamente unívoco. Cabendo tal função ao juiz, estaria o mesmo, bem vistas as coisas, a exercer discricionariamente o conteúdo do acto em causa. Como tal, ou o juiz não estabelece as directivas de juridicidade ou nem todas as vinculações a observar no acto pela Administração e assim não se pronuncia pelo conteúdo do acto, predominantemente discricionário, ou estabelece aquelas directivas e vinculações e, com isso, pronuncia-se vinculativa e concomitantemente sobre o conteúdo do acto, no que o mesmo tem de essencial. E os inconvenientes não parecem acabar aqui. Desde logo, pelas dificuldades que o juiz vai ter ao interpretar aqueles princípios gerais da actividade administrativa, do que eles devem impor em cada situação concreta. Em face, sobretudo, das circunstâncias de facto e das exigências do interesse publico situado. E não se percebe a que outras vinculações deve o juiz atender para fixar as directivas de juridicidade.
Parece-nos que não existiria nenhuma utilidade ou sentido inovatório em relação a tais especificações negativas e preclusivas. Tal “efeito preclusivo” já resultaria do efeito constitutivo da fundamentação das anteriores sentenças de anulação de actos administrativos, no caso, de indeferimento. Ora, como refere VIEIRA DE ALMEIDA, para saber qual o direito que deve aplicar, na sequencia de sentença que declare as invalidades em que anteriormente incorreu, a Administração não precisa nem deveria precisar (a execução da sentença é tarefa que pressupõe autonomia administrativa) que o tribunal lho indique, para além do que resulte da fundamentação de uma sentença declarativa e dos efeitos e limites preclusivos que dela, naturalmente, decorram[31].
Desta forma, parece fazer mais sentido um entendimento restritivo da acção de condenação nestas hipóteses, estando em causa dois tipos de pretensões diferentes e, no fundo, dois tipos de acção de condenação: a acção de condenação na satisfação da pretensão material do autor, que respeitaria o caso dos actos vinculados e corresponderia à previsão do nº1 do artigo 71º e a acção de condenação que apenas tem em vista a repetição do exercício da competência instrutória e decisória da administração, respeitando aos actos discricionários e correspondentes à previsão do nº2 do artigo 71º. Repare-se que a solução encontrada no CPTA em relação à situação paralela de declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares (artigo 77º) foi a de consagrar uma pronúncia declarativa que verifique a violação e, consequentemente, imponha à Administração a emissão das normas em falta, mas em que este decide como entender, embora dentro de um prazo fixado pelo juiz. Como refere JORGE CORTÊS, esta opção em nada repugna, e, bem pelo contrário, respeitaria quer a autoria administrativa quer a autonomia do conteúdo decisório.
Por fim, é de entender que o tribunal se venha impor, de modo positivo, à autoridade administrativa, no respeito desta pelas suas próprias directivas de discricionariedade internas, dele conhecidas através da fundamentação dos actos discricionários, no quadro da aplicação do principio da igualdade. Contudo, adiante-se, que o tribunal apenas poderia conhecer destas “directivas”, de forma indirecta, através da eficácia externa dos princípios em causa e, em cada caso, através da fundamentação dos actos administrativos e das demais prática administrativa. Só por esta via nos parece, ser de alguma forma, possível atribuir um sentido positivo útil residual ao preceito em análise. Em suma, o cidadão não tem, nestes domínios, perante a Administração, um direito subjectivo público material a obter um determinado resultado ou decisão com um determinado conteúdo, mas apenas um direito formal a que a autoridade administrativa decida sem vícios e com respeito pela igualdade de tratamento[32].
Concluindo, o juiz deve limitar os seus poderes de pronúncia à determinação da obrigatoriedade de praticar um acto administrativo com neutralidade e objectividade, limitando.se as directrizes jurídicas, que pode emitir, à determinação dessa obrigação e à imposição do respeito pelo princípio da igualdade, tal como ele resulta aplicável a partir das orientações ou directivas de discricionariedade formuladas pela Administração para os casos concretos semelhantes.







[1] ANTÓNIO CADILHA, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, vol. II, Coimbra, 2010, p.161.
[2] JOÃO CAUPERS, “Imposições à Administração Pública”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº16, p. 49.
[3] SÉRVULO CORREIA, “Les limites au pouvoir d’injunction du juge administratif”, in Estudos Vários, Estudo nº3, vol. II, pp. 177 e 178.
[4] SÉRVULO CORREIA, “Les limites au pouvoir d’injunction du juge administratif”, in Estudos Vários, Estudo nº3, vol. II, pp. 178.
[5] VIEIRA DE ANDRADE, “O novo modelo de impugnação judicial dos actos administrativos. Tradição e reforma”, in Colóquio Luso-Espanhol: O acto no contencioso administrativo – Tradição e Reforma”, coord. Colaço Antunes e Sáinz Moreno, Almedina, Coimbra, 2005, p. 192.
[6] MARIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo regime do processo nos tribunais administrativos”, 4ª edição, Lisboa, Almedina, 2005, p. 224.
[7] SÉRVULO CORREIA, “Les limites au pouvoir d’injunction du juge administratif”, in Estudos Vários, Estudo nº3, vol. II, pp. 178. Como refere o autor “aquilo que o juiz não pode fazer – sob pena de usurpação de poderes – é transformar a injunção num acto funcionalmente administrativo”. Tal aconteceria, em suma, se o juiz se substituísse à Administração, fosse para exercer as opções próprias do poder discricionário, fosse para efectuar um julgamento de valor sobre situações correspondentes a conceitos jurídicos indeterminados.
[8] RUI MACHETE, “A condenação à prática de acto administrativo: algumas questões”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº50, p. 5.
[9] Em sentido diverso, MARIA FRANCISCA PORTOCARRERO, “Reflexões sobre os poderes de pronuncia do Tribunal num novo meio contencioso: a acção para a determinação da prática de acto administrativo legalmente devido na sua configuração no art. 71º do código de processo nos tribunais administrativos”, in ARS Ivdicandi: estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. III, pp. 452 e 453. Considera a autora que mesmo em alguns casos de actos vinculados, à autoridade administrativa poder-se-á ainda reconhecer a possibilidade de escolher o momento da prática do acto, em face das circunstâncias do interesse público, permitindo-se, adoptando esta visão “cega”, que o tribunal usurpe a função administrativa de avaliar a oportunidade do momento da prática dos seus actos.
[10] Aliás, o nº3 do artigo 3º e o nº6 do artigo 167º, ambos do CPTA, admitem, genericamente, a prolação de sentenças substitutivas de actos administrativos apenas quando esteja em causa o exercício de uma competência vinculada.
[11] RUI MACHETE, “A condenação à prática de acto administrativo: algumas questões”, p. 6. Também este autor refere que no caso de actos vinculados, a acção de condenação à prática de acto devido “é funcionalmente similar às obrigações de resultado”, parecendo sustentar que nada poderá opor-se a que o tribunal proceda a uma condenação em sentido estrito.
[12] ANTÓNIO CADILHA, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, pp. 192 e 193.
[14] COLAÇO ANTUNES, “A acção de condenação e o direito ao acto”, in Colóquio Luso-Espanhol: O acto no contencioso administrativo – Tradição e Reforma”, coord. Colaço Antunes e Sáinz Moreno, Almedina, Coimbra, 2005, p. 220.
[15] HUERGO LORA, “ Las pretensiones de condenea en el contencioso-administrativo”, Monografias Aranzadi, p. 307.
[16] Expressão utilizada pela doutrina alemã para expressar as pretensões que, por envolverem tão somente o exercício de uma competência vinculada estão aptas a ser resolvidas (de fundo) pelo Juiz Administrativo.
[17] Exemplo clássico deste tipo de situações foi a decisão do Tribunal Federal Alemão que, depois de constar a ilegalidade da actuação do Gabinete para os Refugiados por este ter rejeitado de forma automática os pedidos destes, ordenou que os tribunais de primeira instância tinham o dever de analisar se os pedidos dos requerentes eram justificados. O problema é que a qualidade de refugiado estava taxativamente fixada na lei (sendo uma matéria que não comportava margem de discricionariedade), o que implicou um trabalho gigantesco para os Tribunais, quando havia uma entidade especializada nessa matéria, derivado do processo complexo existente que envolvia, frequentemente, pesquisas no estrangeiro.
[18] ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, “O controlo jurisdicional da discricionariedade e das decisões de valoração e prognose”, in Estudos de Contencioso Administrativo, Lisboa 2000, p. 407.
[19] ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, “O controlo jurisdicional da discricionariedade e das decisões de valoração e prognose”, p. 408 e 409.
[20] MARIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo regime do processo nos tribunais administrativos”, p. 213.
[21] MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, “Direito Administrativo geral – Introdução e princípios fundamentais”, Tomo I, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2004, p. 198.
[22] Assim, JOÃO PACHECO DE AMORIM, “A substituição judicial da Administração na prática de actos administrativos devidos”, in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I – O debate universitário. Coimbra Editora, 2003, p. 481.
[23] Em especial, COLAÇO ANTUNES, “A acção de condenação e o direito ao acto”, p. 228.
[24] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo regime do processo nos tribunais administrativos”, pp. 227 e 228.  Responde o autor a estas criticas com o argumento de que o grande mérito da teoria clássica da redução da discricionariedade a zero consistiu em permitir ao juiz a necessidade de ultrapassar uma mera posição “negativa” da apreciação da legalidade do acto ou omissão administrativa, para passar para um ponto de vista em que se vá além de tal constatação e se afira se, no caso em análise, estão reunidas as condições para que se considere que a Administração está vinculada a actuar num determinado sentido concretamente definido.
[25] ANTÓNIO CADILHA, “Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”, pp. 205 e 206.
[26] NUNO PIÇARRA, “A separação de poderes na Constituição de 1976”, in Dez anos da Constituição, Lisboa, 1987, p. 337.
[27] ANTÓNIO CADILHA, O autor realça também que, ao contrário do nº1 do mesmo preceito, existindo uma intrínseca e inseparável ligação entre a tarefa de recolha e selecção de informações e elementos de decisão, e a tarefa de apreciação da relevância dos factores seleccionados e a adopção, com base neles, dos referidos juízos de valor e raciocínios de prognose, não seria permitida a intervenção instrutória do juiz na recolha de material probatório, pois a sede própria para o efeito é o procedimento administrativo.
[28] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, 2ª edição actualizada, Almedina, 2009, pp. 392-395.
[29] ROGÉRIO SOARES, “Direito Administrativo”, pp. 51-55.
[30] Como nos relembra MARIA FRANCISCA PORTOCARRERO, “Reflexões sobre os poderes de pronuncia do Tribunal num novo meio contencioso”, pp. 470-474.
[31] VIEIRA DE ANDRADE, “A justiça administrativa: lições”, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 377 a 379.
[32] MARIA FRANCISCA PORTOCARRERO, “Reflexões sobre os poderes de pronúncia do Tribunal num novo meio contencioso”, pp. 487 e 488.



Diogo Coelho, nº 22003, subturma 3



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