segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O contencioso pré-contratual "que temos e o que queremos"


A designação de contencioso pré-contratual é deduzida da expressão “actos pré-contratuais” utilizada para actos administrativos praticados no procedimento de formação dos contratos públicos. Insere-se entre as impugnações urgentes. Estas baseiam-se na existência de uma realidade composta por direitos e interesses que são dignos de uma tutela relevante que não consente uma decisão judicial de pendor meramente ressarcitório, e por outro lado, como em qualquer situação urgente, existe sempre uma ameaça ou perigo de um prejuízo causado pela tramitação processual normal, que será sempre mais demorada. Poderá ser entendida como uma situação de excepção, da qual brotam regras excepcionais.
Este é o meio processual através do qual se procede à impugnação de actos relativos à formação dos contratos aí especificadamente previstos. Está em causa o estabelecimento de um regime especifico para a impugnação contenciosa de actos praticados no âmbito do procedimento de formação de certos tipos de contratos.
Este meio processual deve ser utilizado, quando estejam em causa decisões administrativas relativas à formação dos referidos contratos. Também é o meio indicado para a impugnação directa de documentos contratuais normativos: que incluem o programa do concurso, o caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do procedimento pré-contratual. Tal situação respeita a situações em que há interesse em suscitar a questão da legalidade de determinações contidas nestes documentos, pedindo  invalidação destas determinações.
Mário Aroso de Almeida(1) chama à atenção para o facto de, no regime vigente, o artigo 100.º estender o âmbito de aplicação do regime a actos que não são administrativos pré-contratuais, equiparados pelo CPTA. O Autor exemplifica o programa do concurso, o caderno de encargos e os demais documentos conformadores do procedimento de formação do contrato, ou ainda, nos termos do nº3 do referido artigo, actos jurídicos praticados por sujeitos privados, no âmbito de procedimentos pré-contratuais de direito público.
A existência de um processo autónomo e urgente resulta da necessidade de assegurar simultaneamente duas ordens de interesses, tanto públicos como privados: por um lado promover neste domínio a transparência e a concorrência, através de uma protecção adequada aos interesses dos candidatos à celebração de contratos com as entidades públicas;  por outro, garantir a estabilidade dos contratos da Administração depois de celebrados, dando protecção adequada aos interesses dos contratantes.
O contencioso pré-contratual acaba por dar continuidade ao regime especial instituído pelo Decreto-lei 134.º/98, de 15 de Março, para determinados contratos, em aplicação da chamada “Directiva-Recursos” (Directiva nº 89/665/CEE e 92/13/CEE de 25 de Fevereiro) alargada agora aos contratos de concessão de obras públicas. Tais directivas exigem que os Estados-membros da União Europeia criem condições para a rápida resolução dos litígios que possam surgir a propósito dos procedimentos de formação desses mesmos contratos: estas directivas, para além de imporem uma maior celeridade aos processos de impugnação de actos processuais, disciplinam questões relativas às providências cautelares.
O professor Vieira de Andrade tem alguma dificuldade em perceber o porquê deste meio valer apenas para os contratos abrangidos pelas directivas comunitárias, uma vez que este meio processual é, na óptica do professor, um óptima solução para a generalidade dos contratos.
Nos termos do artigo 101.º CPTA, o prazo de apresentação do pedido é de um mês. Trata-se de um alongamento do prazo anterior de 15 dias, que por ser bastante curto, acabava também por conduzir a inúmeras situações de desprotecção, numa situação em que nem as próprias Directivas propunham uma solução tão drástica(2), e, sobretudo, tal como indica Vieira de Andrade (3), não se admitia o uso alternativo do pedido de impugnação do acto no prazo normal.
Por força do artigo 100.º/1 aplicam-se as normas relativas à impugnação de actos, como a legitimidade do 55.º e a prossecução da acção pelo Ministério Público do artigo 62.º
No que respeita à tramitação está em causa a acção administrativa especial (artigos 78.º e seguintes), com possibilidade, nos termos dos artigos 102.º e 103.º de concentração numa audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, com alegações orais e sentença imediata. Havendo procedência, a sentença será anulatória ou de declaração da invalidade do acto ou do documento contratual. Os tribunais administrativos têm feito uma interpretação extensiva do artigo 46.º/3 CPTA, que estende os seus poderes de pronuncia à condenação à pratica de actos administrativos devidos(4) . Parece uma medida pertinente uma vez que sendo esta pretensão autonomizada no CPTA por intervenção do Direito Comunitário exista depois uma menor efectividade dessa tutela por comparação ao regime ordinário do CPTA consagrada quanto à acção administrativa especial(5).
O artigo 103.º tem uma inovação: o tribunal, oficiosamente ou a requerimento das partes, pode optar pela realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, em que as alegações finais são proferidas oralmente, sendo imediatamente ditada a sentença. Para Mário Aroso de Almeida, esta situação não tem tido grande relevância pratica, e acaba por ser pouco adequado quando estamos na presença de litígios com uma grau mais elevado de complexidade.
Ainda assim, apesar de o contencioso pré-contratual ser uma forma de “facilitar” a resolução dos litígios emergentes, isto nem sempre acontece.
A este respeito, Margarida Olazabal Cabral(5) chama à atenção para um importante problema: a urgência do contencioso que é imposta pelas Directivas Comunitárias não deve ser entendida como uma “realidade imposta”. Os juízes, nas palavras da Autora, devem ir mais longe e compreender a sua razão de ser, para que esta urgência seja acompanhada pela realidade da vida. Está em causa, acima de tudo, uma estabilidade no prazo mais curto possível sobre a legalidade dos actos proferidos nos procedimentos pré-contratuais e dos contratos de forma a que a economia possa funcionar dada a importância crescente da contratação pública. É importante acautelar a confiança dos interessados no funcionamento adequado do procedimento. A Autora aponta então a necessidade de rápida de decisão de fundo e propõe ainda a existência de um contencioso pré-contratual urgente, consubstanciado numa acção principal, com efeitos suspensivos automáticos sobre o procedimento, e com a possibilidade de serem levantados pelo juiz.
O legislador português já procedeu à transposição da Directiva Recursos na sua última versão, como se pode comprovar no preâmbulo do DL n 131.º/2010 de 14 de Dezembro: tal diploma alterou o Código dos Contratos Públicos, mas nada fez quando ao CPTA. O contencioso pré-contratual é ainda um meio estigmatizado(5) pela acção administrativa especial de invalidação de actos administrativos, caracterizado apenas pela urgência e pelos prazos mais curtos.
Estando em curso uma importante reforma do contencioso administrativo, será de referir a sua importância no âmbito do nosso tema. Assim sendo, a “alteração” do contencioso pré-contratual corresponde ao quarto aspecto elencado na Reforma. Serão abrangidos pela reforma, vários temas nomeadamente, o âmbito, o prazo, a legitimidade, a própria tramitação e os dois pontos sobre os quais nos temos centrado: os mecanismos destinados a assegurar a utilidade da sentença e os mecanismos de reparação, numa situação em que a sentença tenha perdido o seu efeito.
 Surge o propósito de proceder à transposição das Directivas Recursos, ,uma vez que o CPTA ainda não tinha sido modificado de forma a adequar a sua disciplina legal conforme as alterações introduzidas às Directivas Recursos pela Directiva 2007/66/CE. associando um efeito suspensivo automático à impugnação de actos de adjudicação, introduzindo um regime inovador na adopção de medidas provisórias no âmbito do próprio contencioso pré-contratual(6). Esta é uma das novas medidas a aplaudir.

O projecto, com a transposição, prevê  agora um novo artigo, o 103.º-A cujo número um consagra um efeito suspensivo automático da impugnação da decisão de adjudicação: "a impugnação de atos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado, se ta, não tiver já sido obtido através de adoção de providência cautelar". Isto vem acautelar uma situação desde há muito aclamada na doutrina: o perigo de constituição de uma situação de facto consumado.
Há uma intenção de rever a possibilidade de ser requerida ao juiz a adopção de medidas provisórias, de forma a prevenir-se o risco de situações de facto consumado, por não ser possível retomar o procedimento pré-contratual para determinar o adjudicatário. Será possível para o juiz, quando tenha elementos que justifiquem, possa ouvir as partes, determinando oficiosamente a suspensão de eficácia do acto impugnado ou a adopção de outras medidas provisórias, remetendo então para as providências cautelares. Este mecanismo de suspensão automática é depois complementada pelo novo 103.º-B. Os artigos 103.º-A e 103.º-B trazem para o processo principal os problemas próprios dos processos cautelares e fazem depender a suspensão de um juízo de ponderação de interesses, tem a vantagem de recordar que o autor deve também aqui invocar os factos que traduzem prejuízos para a sua esfera jurídica. Nos termos do artigos 103.º-A nºs 2 e 3  e 103.º-B nº2 é conferido à entidade adjudicante o direito ao contraditório de forma se possa demonstrar que o procedimento não deve afinal ser suspenso. É necessário por parte do Tribunal uma ponderação dos inconvenientes que cada uma das soluções acarreta para os interesses das partes em análise.
No que respeita ao mecanismo de reparação da sentença, esclarece-nos o 102.º/6 que haverá lugar à convolação do processo aplicando-se o disposto nos artigos 45.º e 45.º-A quando se preencham determinados pressupostos. No nosso caso, interessa saber que o Tribunal deve (1) verificar que já não é possível reinstruir o procedimento pré-contratual, por ter sido celebrado e executado o contrato (45.º-A 1/a)) ou (2) proceda, segundo o disposto na lei substantiva, ao afastamento da invalidade do contrato, tendo em conta os interesses públicos em presença. (45.º-A b)) (8)


Do exposto, parece-nos assim, que estão acauteladas as preocupações no que respeita à pretensa celeridade do contencioso pré-contratual, assim como a eventual falta de transposição das directivas. As alterações em matéria de contencioso pré-contratual traduzem uma maior preocupação pela realidade da vida e importância da contratação pública em Portugal. Este crescimento constante deveria ser acautelado, assim como estimulado através da demonstração de preocupação do legislador na confiança e certeza da resolução dos litígios emergentes da contratação, incrementando a sua verificação. Parece-nos que foi encontrada a motivação para a continuação da contratação pública.
_________
(1) Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 3ª edição revista e actualizada
(2)Fausto de Quadros, “O Debate Universitário”
(3) Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (Lições)” 4ª edição
(4)cfr. Acórdão STA de 24 de Novembro de 2004, in Cadernos de Justiça Administrativa, pp.53
(5) Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo” Almedina, 2014
 (6) Margarida Olazabal Cabral - Processos urgentes principais – em especial, o contencioso pré-contratual: corresponde à conferência  apresentada oralmente no XIV Seminário de Justiça Administrativa.
(7) Rodrigo Esteves da Fonseca, O contencioso urgente da contratação pública, intervenção no XI Seminário de Justiça Administrativa, dedicado ao tema: “A reforma da Justiça Administrativa 2004-2009: balanço e perspectivas”
(8) Marco Caldeira: Impugnações Administrativas e Contencioso pré-contratual urgente: um olhar sobre a jurisprudência

Considerações finais:
(*1) A expressão “que temos e que queremos” foi retirada do texto de Margarida Olazabal Cabral na sua exposição no Seminário de Justiça Administrativa, indicado supra.
(*2) Note-se que estes artigos foram extraídos da proposta de Lei para a Reforma do contencioso Administrativo relativo ao Código do Processo dos Tribunais Administrativos e ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Maria Joana Rodrigues 
22093


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