a) A legitimidade activa no actual CPTA
A legitimidade processual, enquanto pressuposto processual, afere-se hoje por referência aos princípios gerais dos arts. 9.º CPTA (legitimidade activa) e 10.º CPTA (legitimidade passiva). Como indicia desde logo o título da presente exposição, aqui trataremos apenas da legitimidade activa do critério da alínea a) do art. 55.º CPTA, que se refere à legitimidade para intentar acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos por quem alegue ter um “interesse directo e pessoal".
No que respeita ao princípio geral de legitimidade activa, constante do art. 9.º/1 CPTA, umas breves notas:
i) este critério - apesar do carácter geral- mostra-se, na prática, de aplicação residual porque o CPTA estabelece outros critérios de legitimidade activa, estes especiais (falamos do art. 40.º para acções relativas a contratos e aos arts. 55.º, 57.º, 68.º e 73.º para os vários tipos de acções administrativas especiais), que são muito mais utilizados na prática do que o critério geral do art. 9.º.
ii) ao dispor que “o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”, aproxima-se de uma visão subjectivista, atribuindo legitimidade a quem alegue ser parte de uma relação jurídica administrativa, visa tutelar os direitos e interesses pessoais dos cidadãos. Adoptando uma visão objectivista, pelo contrário, teríamos uma tutela do interesse público, da legalidade, que atribuiria legitimidade, no limite, a toda e qualquer pessoa que testemunhasse algum acto ilegal. Estas duas visões, que percorrem todo o contencioso administrativo e não só a questão da legitimidade processual, são as protagonistas desta querela doutrinária central.
Avançamos portanto ao que nos cabe aqui examinar, que será a legitimidade activa prevista no regime especial do art. 55.º, para a acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos.
b) A legitimidade activa no art. 55.º e os vários conceitos de interesse para o preenchimento deste pressuposto processual
Já deixamos claro o regime especial do art. 55.º CPTA face ao art. 9.º, na medida em que se refere à legitimidade activa para interposição de acções administrativas especiais de impugnação de actos administrativos, sucessora do antigo recurso directo de anulação.
Podemos afirmar com segurança que as várias alíneas do art. 55.º atribuem uma legitimidade mais ampla do que aquela prevista no n.º1 do art. 9.º. Quanto ao conceito de interesse que é preciso preencher para que o pressuposto da legitimidade do Autor esteja verificado, cabe identificar as várias modalidades que o art. 55º acolhe nas várias alineas1:
i) o interesse individual, previsto na al. a) como um interesse “pessoal e directo”, que iremos desenvolver com mais pormenor mais abaixo;
ii) o interesse público, concretamente, o interesse do Estado e das demais entidades territoriais regionais e locais e que é representado no artº pelo Ministério Público e pelas pessoas colectivas públicas, no âmbito das relações jurídicas “interadministrativas”;
iii) o interesse difuso, presente na acção popular prevista na al. f) do art. 55.º. Os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira definem este interesse difuso como a “refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada”2;
iv) o interesse colectivo, que nas palavras do Prof. Carlos Cadilha trata-se de “um interesse particular comum a certos grupos ou categorias organizados de cidadãos, e que é referenciado a certos valores jurídico-económicos ou sócio-profissionais”3.
Cabe ainda fazer uma breve referencia ao nº 2 do referido art. 55.º, que configura a acção popular correctiva e que cede legitimidade a “qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos” e que tem uma tarefa de “fiscalização cívica” no que toca a eventuais actuações ilegais das autarquias locais que se traduzam em actos administrativos.
Após esta breve exposição das várias modalidades do conceito de interesse do artº55, cabe agora analisar em concreto o tipo interesse da alinea a).
c) O interesse pessoal e directo da alínea a) do art. 55.º
A alínea a) do art. 55.º exige um interesse directo e pessoal do autor impugnante para propor acção especial de impugnação de acto administrativo. Sem dúvida que esta norma contrasta bastante com a do art. 9.º/1, não só na redacção, mas por apresentar um critério distinto ao de ser ou não parte na relação material controvertida.
Vale a pena desenvolver aqui uma prespectiva histórica quanto a esta questão: antes da Reforma 2002/2004, a legitimidade para interpor o então recurso directo de anulação, em relação à situação prevista na actual al. a), exigia um interesse que para além de pessoal e directo teria que ser também legítimo. Quais eram as suas implicâncias e qual o porquê a sua exclusão da actual redacção da alínea a)?
O prof. Marcello Caetano, no seu artigo “O Interesse como Condição de Legitimidade no Recurso Directo de Anulação”4 explica que o carácter legítimo do interesse, na linha do autor italiano Zanobini, seria “um interesse individual estreitamente conexo com um interesse público e protegido pela ordem jurídica através da tutela deste último”. Assim, o interesse só não será legítimo “se a lei visar unicamente a protecção dos interesses da Administração”. Ou seja, “(…) é legítimo se decorrer do facto de o seu titular haver sido desfavorecido no processo em que foi praticado o acto recorrido ou se for objecto de protecção jurídica, mesmo indirecta”. Podemos concluir então se que a utilidade proveniente do recurso não fosse reprovada pelo direito, poderiamos falar de um interesse legítimo.
Contudo, este requisito já não se encontra em vigor e o Prof. Carlos Cadilha5 aponta o facto do interesse legítimo se confundir com o “interesse legalmente protegido”, sendo mais uma condição de procedência da acção do que propriamente uma questão de pressupostos.
Indo agora ao centro da questão: como definir o carácter directo e pessoal do interesse relevante para efeitos da alínea a) do art. 55.º?
Em primeira instância, quanto à noção de interesse, podemos desde logo afirmar que este não tem de ser um interesse jurídico; basta que exista um interesse de facto. O interesse pode derivar da circunstância de “ter sido lesado pelo actos nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” mas a expressão “designadamente” utilizada pelo legislador revela que basta que haja um beneficio ou uma vantagem com a destruição do acto juridico mesmo que tal não corresponda a um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido - o que torna a legitimidade activa, neste caso, bastante mais ampla.
Esta situação não corresponde por isso à posição clássica de Hauriou sobre a exigência de que o interesse derivasse de uma situação jurídica, excluindo os meros interesses de facto. Já o Prof. Marcello Caetano o havia contestado, reconduzindo a noção de interesse à adoptada pelo Código de Processo Civil, admitindo assim que o interesse possa ser material ou moral6. O indicador base é, protanto, a apuração de uma utilidade ou vantagem em consequência do provimento da acção.
Quanto ao carácter directo do interesse, Hauriou defendeu que o interesse será directo (e imediato) quando não seja eventual, mas sim actual, originando uma satisfação imediata do impugnante com a impugnação do acto, em vez de uma satisfação longínqua.
É nesta linha que, de resto, os Autores vêm definindo este requisito, senão vejamos: o prof. Mário Aroso de Almeida define este carácter directo relacionando-o com o interesse actual e efectivo: “(…) trata-se de saber se o impugnante se encontra numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório”7. O Prof. refere ainda a posição sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo no sentido segundo o qual terá legitimidade para impugnar o acto quem espere obter um certo benefício do acto impugnado e o possa receber, de que já falamos anteriormente.
No que diz respeito, por fim, ao carácter pessoal do interesse, este também não envolve grande discussão doutrinária na doutrina. O fundamental é tratar-se de um interesse não exclusivo de um só sujeito, mas um interesse de pessoas determinadas, um interesse individualizável. O que é mesmo exigido com a pessoalidade do interesse (que é, na posição do prof. Mário Aroso de Almeida o único requisito que diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade) é que o sujeito beneficie ele próprio da utilidade decorrente da anulação ou declaração de nulidade do acto impugnado - que seja na sua esfera jurídica que se reproduzirá o efeito vantajoso.
Em jeito de conclusão, resta reconhecer a importância desta alínea a). pela larga ampliação que é feita quanto à legitimidade dos interessados, não só em relação à regra geral do art. 9.º/1 como comparando com outros critérios de legitimidade activa dentro no nosso ordenamento juridico portugues e que se traduz num maior número de casos que, possivelmente, não caberiam em nenhuma outra previsão, se esta não existisse que podem aqui encontrar a sua tutela quanto à legtimidade para impugnar actos da Administração. Isto principalmente pela “exigência” de um mero interesse de facto.
Termino com uma referência à tendência objectivista desta e de outras alíneas do artigo, na medida em que chega a alegação de uma futura vantagem com a procedência da acção para a legitimidade se verificar. Como dissemos anteriormente: vai para além da existência de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido.
1 Seguimos aqui o método de explicitação de CARLOS CADILHA, Legitimidade Processual, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 34, 2002, pág. 18.
2 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, anotação ao art. 52.º, pág. 281.
3 CARLOS CADILHA, Legitimidade Processual, ob. cit., pág. 18.
4 in Estudos de Direito Administrativo, Lisboa, 1974.
5 Legitimidade Processual, ob.cit., pág. 18, nota 31.
6 O interesse..., ob. cit., pp. 224 e segs.
7 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Almedina, 2013, pág. 235.
Visto.
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