segunda-feira, 24 de novembro de 2014

As relações jurídicas administrativas multipolares e a sua protecção



Antes de mais, há que justificar a escolha do tema pela enorme fragilidade e acuidade que a temática da tutela de terceiros assume no processo administrativo. Mais do que no Processo Civil? Pensamos que sim. E a fundamentação é simples. A verdade é que a Administração Pública assume, crescentemente, tarefas distributivas, redistributivas ou de repartição de recursos, acção que acaba por afectar múltiplas categorias de sujeitos e interesses no domínio da ordem económico-social. 

Antes de mais cumpre frisar a grande dificuldade em demarcar o destinatário do acto administrativo de todos aqueles a quem não se dirige a regulação individual e concreta mas que também não lhe são completamente estranhos. Em bom rigor, o terceiro seria aquele que não possui qualquer interesse na acção. Porem, na dogmática administrativa, o termo passou a ser utilizado para designar aqueles que acabam por ser atingidos por uma regulação individual e concreta que não os visa. O grande problema que aqui se coloca prende-se com a delimitação do respectivo perímetro à luz da teoria da relação jurídica. A meu ver, assistimos cada vez mais a uma substituição da concepção de Direito enquanto pirâmide de normas, pela de complexa teia, interligada pelas múltiplas conexões típicas. De facto, parece-me, e neste ponto sigo SÉRVULO CORREIA, existir hoje em Portugal uma consciência mais clara e avançada do que aquela que está patente na doutrina alemã quanto à continuidade gradativa que se estende desde os direitos subjectivos verdadeiros e próprios e dos interesses legalmente protegidos, aos interesses colectivos, individuais, homogéneos, difusos e os interesses de facto.

Na verdade, parece sábia a fórmula do legislador no artº 55/1/a CPTA ao salvaguardar que, o acesso daqueles que aleguem lesão de direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, estendendo-o a outros que também possam invocar um interesse directo e pessoal não claramente abrangido por aqueles dois tipos de situações jurídicas subjectivas que a Constituição garante a tutela no seu artº268/4.

O que se pretende com este artigo é analisar criticamente a efectividade da tutela de terceiros no contencioso administrativo, naquilo que está relacionado com o acto administrativo e com a sua impugnação (artº 50 e sgs CPTA).

Mas afinal, quem são estes terceiros que nos atrevemos a defender da actuação administrativa? Numa óptica substantiva, são, por exemplo, terceiros relativamente a um regulamento administrativo os particulares que, apesar de não estarem integrados na previsão da norma, são por esta afectados por fazerem parte da relação jurídica administrativa que a mesma constitui, modifica ou extingue. Nas operações materiais administrativas, podem considerar-se terceiros aqueles sujeitos que se vêem afectados por uma actuação material da administração pública que, à partida, não os tinha por destinatários.

Há que dar o devido destaque aos chamados actos de efeito duplo (doppelwirkung) ou com eficácia em relação a terceiros (drittwirkung), ou seja, aqueles actos administrativos que, acarretando certos prejuízos para a esfera de certos titulares, têm efeitos vantajosos para outros, ou que acabam por afectar um círculo mais abrangente de sujeitos para além daqueles que são directamente visados por esta forma de actividade administrativa. Imagine-se, por exemplo o caso das licenças de construção, que beneficiando o seu titular vão sempre afectar os vizinhos dos prédios confinantes.
Não há como disfarçar esta nebulosidade que existe em torno do conceito de terceiros e que acabe por resultar num casuísmo da análise concreta. O procedimento administrativo como estrutura integratória de interesses poderia revelar-se útil como centro aglutinador. Assim o afirma DAVID DUARTE, dizendo que “o procedimento administrativo funciona como um centro de apaziguamento de conflitos e consegue ser, ao mesmo tempo, uma garantia dos dois objectivos essenciais que assistem ao fenómeno participatório: protecção de interesses particulares e colaboração exterior na tarefa de realização do interesse pública.

Assumindo uma concepção diversa está o professor VASCO PEREIRA DA SILVA, defendendo que o instrumento técnico para explicar os vínculos jurídicos que ligam os diferentes sujeitos privados e cada um desses às autoridades administrativas é a relação jurídica administrativa. Para o professor, os particulares afectados pela actuação da Administração a quem são reconhecidos direitos subjectivos, não são terceiros em face de uma relação jurídica estabelecida entre outros privados e a Administração, são antes partes ou sujeitos de uma relação jurídica multilateral que abrange as autoridades administrativas, os privados que são destinatários da actuação administrativa e todos eles que são por ela afectados.

Cabe agora analisar o conceito operatório a nível processual de “terceiros”. E esta necessidade deve-se ao facto de o conceito substantivo do termo apenas se mostrar dogmaticamente adequado no exame da legitimidade destes sujeitos no acesso aos tribunais, isto é, discernir em que medida podem estar sujeitos, colateralmente afectados pela actuação administrativa, aceder à justiça administrativa para ai obterem uma protecção jurisdicional eficaz.

Os artº 20 e 268/4 da CRP consagram em termos explícitos o princípio da tutela jurisdicional efectiva, garantia que pretende fazer corresponder a cada direito material uma reacção processual eficaz contra a ingerência ilícita dos poderes públicos na esfera jurídica do individuo. Este direito pode ser qualificado como instrumental (como sugere VIEIRA DE ALMEIDA), não só porque se destina a assegurar a efectividade de outros direitos fundamentais, mas também porque possui um sentido omnicompreensivo. Ora, podemos concretizar este princípio em três vectores distintos: a) princípio do acesso aos tribunais; b) principio das competências de conformação processual e c) princípio da utilidade e eficácia da pronúncia jurisdicional. A meu ver, só à luz destes três vectores poderemos aferir se os indivíduos considerados terceiros, tanto em sentido substantivo como processual, encontram no nosso contencioso administrativo uma tutela jurisdicional efectiva. Mas este raciocínio deve ter sempre como linha condutora o facto do princípio da tutela jurisdicional efectiva ter sido a força motriz da reforma do contencioso administrativo, sendo tal principio enunciado desde logo no artº 2º CPTA como um dos eixos fundamentais da nova legislação (orientação desde logo com uma grande influencia germânica). Relativamente a este ponto, reitero por completo as palavras do professor VASCO PEREIRA DA SILVA quando afirma que “ o direito público não deve mais ser o direito do Estado e dos seus órgãos, mas o dos indivíduos e dos seus direitos, tal como o Direito Administrativo não deve ser mais que o direito da Administração, mas o direito dos individuais nas relações administrativas”.

Relativamente à natureza das posições jurídicas de terceiros, note-se que não se justifica fazer a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos, pois verifica-se que esta dicotomia resulta apenas do facto de o ordenamento jurídico atribuir posições de vantagem aos particulares através das mais diversas formas, com diversos níveis de intensidade, sendo que em todos esses casos estamos perante verdadeiros direitos subjectivos, aos quais se deve reconhecer um grau de protecção idêntico.

Ao contrário do que se poderia pensar, o princípio da tutela jurisdicional efectiva não se satisfaz com a garantia de um “qualquer meio de intervenção processual” que possa ser atribuído aos terceiros que devam ser investidos na posição de contra interessados no processo, ele exige, de facto, uma paridade simétrica entre as posições do autor e do contra-interessado com todas as consequências que daí resultem, nomeadamente no que toca à igualdade entre as partes (artº 20/4 CRP) e do princípio do contraditório (32/5 CRP).
Cabe ainda analisar a figura dos contra-interessados pela sua importância nesta matéria. Possuindo interesses opostos aos do autor da acção, esta figura vem consagrada no artº 57 do CPTA que assume um carácter extraordinariamente amplo. E isto porque abrange não só aqueles que são directamente afectados pela sentença como também aqueles que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado. Ora, isto traduz-se num aumento considerável do universo dos contra interessados pois a exigência da mera titularidade de um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado irá aumentar consideravelmente o numero de terceiros legitimados a figurarem como partes principais no processo.

Porém, e permitam-me a critica, esta solução alargada suscita problemas de várias ordens. Primeiro porque vai onerar de forma significativa a posição do autor, dado que este tem de indicar na petição inicial todos aqueles que, face à lei, devam ser considerados contra-interessados (78/2f); depois porque, tendo em conta as diferenças substanciais, embora não formais, existentes entre estes contra-interessados, não é correcto que se lhes aplique um regime processual idêntico. Por ultimo, uma concepção que seja excessivamente ampla de contra-interessados gera problemas ao nível dos efeitos da sentença, caso se admita que todos os contra-interessados é imprescindível para que a sentença possa produzir os seus efeitos normais, então bastará que um não esteja presente para que esse resultado indesejável ocorra.

Contudo, é de salientar que, a opção do legislador no caso do artº 68/2 respeitante à intervenção de contra-interessados na acção de condenação à pratica de acto devido, apresenta-se bastante ponderada, ainda para mais se tivermos em conta de que esta problemática ainda se reveste de uma considerável polémica em ordens jurídicas de outros países.

No fundo, pode concluir-se que, no que toca à posição dos contra-interessados, assistiu-se, com a Reforma do Contencioso, a um reforço da sua tutela, quer no que respeita à legitimidade, quer no que respeita aos poderes de conformação processual. O que se assiste no cenário de Contencioso português é, na minha opinião, a uma crescente posição de paridade simétrica relativamente às partes estruturais, que são elas o autor e a entidade demandada, panorama esse que não encontra paralelo noutras ordens jurídicas.

Por último, cumpre ainda delinear a posição do terceiro que não teve a oportunidade de interferir no processo, não ficando este vinculado ao caso julgado pelo facto de não lhe poder ser oposta uma decisão em que não pode participar e em que, concomitantemente, se decidiu sobre o mérito da relação material controvertida na qual a sua posição substantiva se integrava.


Raquel Frazão Vaz 
Nº 22097

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