Antes de mais, há que justificar a
escolha do tema pela enorme fragilidade e acuidade que a temática da tutela de
terceiros assume no processo administrativo. Mais do que no Processo Civil?
Pensamos que sim. E a fundamentação é simples. A verdade é que a Administração
Pública assume, crescentemente, tarefas distributivas, redistributivas ou de
repartição de recursos, acção que acaba por afectar múltiplas categorias de
sujeitos e interesses no domínio da ordem económico-social.
Antes de mais cumpre frisar a grande
dificuldade em demarcar o destinatário do acto administrativo de todos aqueles
a quem não se dirige a regulação individual e concreta mas que também não lhe
são completamente estranhos. Em bom rigor, o terceiro seria aquele que não
possui qualquer interesse na acção. Porem, na dogmática administrativa, o termo
passou a ser utilizado para designar aqueles que acabam por ser atingidos por
uma regulação individual e concreta que não os visa. O grande problema que aqui
se coloca prende-se com a delimitação do respectivo perímetro à luz da teoria
da relação jurídica. A meu ver, assistimos cada vez mais a uma substituição da
concepção de Direito enquanto pirâmide de normas, pela de complexa teia,
interligada pelas múltiplas conexões típicas. De facto, parece-me, e neste
ponto sigo SÉRVULO CORREIA, existir
hoje em Portugal uma consciência mais clara e avançada do que aquela que está
patente na doutrina alemã quanto à continuidade gradativa que se estende desde
os direitos subjectivos verdadeiros e próprios e dos interesses legalmente
protegidos, aos interesses colectivos, individuais, homogéneos, difusos e os
interesses de facto.
Na
verdade, parece sábia a fórmula do legislador no artº 55/1/a CPTA ao salvaguardar que, o acesso daqueles que aleguem
lesão de direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, estendendo-o a
outros que também possam invocar um interesse directo e pessoal não claramente
abrangido por aqueles dois tipos de situações jurídicas subjectivas que a Constituição garante a tutela no seu artº268/4.
O
que se pretende com este artigo é analisar criticamente a efectividade da
tutela de terceiros no contencioso administrativo, naquilo que está relacionado
com o acto administrativo e com a sua impugnação (artº 50 e sgs CPTA).
Mas
afinal, quem são estes terceiros que nos atrevemos a defender da actuação
administrativa? Numa óptica substantiva, são, por exemplo, terceiros
relativamente a um regulamento administrativo os particulares que, apesar de
não estarem integrados na previsão da norma, são por esta afectados por fazerem
parte da relação jurídica administrativa que a mesma constitui, modifica ou
extingue. Nas operações materiais administrativas, podem considerar-se
terceiros aqueles sujeitos que se vêem afectados por uma actuação material da
administração pública que, à partida, não os tinha por destinatários.
Há
que dar o devido destaque aos chamados actos de efeito duplo (doppelwirkung) ou com eficácia em
relação a terceiros (drittwirkung),
ou seja, aqueles actos administrativos que, acarretando certos prejuízos para a
esfera de certos titulares, têm efeitos vantajosos para outros, ou que acabam
por afectar um círculo mais abrangente de sujeitos para além daqueles que são
directamente visados por esta forma de actividade administrativa. Imagine-se,
por exemplo o caso das licenças de construção, que beneficiando o seu titular
vão sempre afectar os vizinhos dos prédios confinantes.
Não
há como disfarçar esta nebulosidade que existe em torno do conceito de
terceiros e que acabe por resultar num casuísmo da análise concreta. O
procedimento administrativo como estrutura integratória de interesses poderia
revelar-se útil como centro aglutinador. Assim o afirma DAVID DUARTE, dizendo que “o procedimento administrativo funciona
como um centro de apaziguamento de conflitos e consegue ser, ao mesmo tempo,
uma garantia dos dois objectivos essenciais que assistem ao fenómeno
participatório: protecção de interesses particulares e colaboração exterior na
tarefa de realização do interesse pública.
Assumindo
uma concepção diversa está o professor VASCO PEREIRA
DA SILVA, defendendo que o instrumento técnico para explicar os vínculos
jurídicos que ligam os diferentes sujeitos privados e cada um desses às
autoridades administrativas é a relação jurídica administrativa. Para o
professor, os particulares afectados pela actuação da Administração a quem são
reconhecidos direitos subjectivos, não são terceiros em face de uma relação
jurídica estabelecida entre outros privados e a Administração, são antes partes
ou sujeitos de uma relação jurídica multilateral que abrange as autoridades
administrativas, os privados que são destinatários da actuação administrativa e
todos eles que são por ela afectados.
Cabe
agora analisar o conceito operatório a nível processual de “terceiros”. E esta
necessidade deve-se ao facto de o conceito substantivo do termo apenas se mostrar
dogmaticamente adequado no exame da legitimidade destes sujeitos no acesso aos
tribunais, isto é, discernir em que medida podem estar sujeitos, colateralmente
afectados pela actuação administrativa, aceder à justiça administrativa para ai
obterem uma protecção jurisdicional eficaz.
Os
artº 20 e 268/4 da CRP consagram em
termos explícitos o princípio da tutela jurisdicional efectiva, garantia que
pretende fazer corresponder a cada direito material uma reacção processual
eficaz contra a ingerência ilícita dos poderes públicos na esfera jurídica do
individuo. Este direito pode ser qualificado como instrumental (como sugere VIEIRA DE ALMEIDA), não só porque se
destina a assegurar a efectividade de outros direitos fundamentais, mas também
porque possui um sentido omnicompreensivo. Ora, podemos concretizar este princípio
em três vectores distintos: a) princípio do acesso aos tribunais; b) principio
das competências de conformação processual e c) princípio da utilidade e
eficácia da pronúncia jurisdicional. A meu ver, só à luz destes três vectores
poderemos aferir se os indivíduos considerados terceiros, tanto em sentido
substantivo como processual, encontram no nosso contencioso administrativo uma
tutela jurisdicional efectiva. Mas este raciocínio deve ter sempre como linha
condutora o facto do princípio da tutela jurisdicional efectiva ter sido a
força motriz da reforma do contencioso administrativo, sendo tal principio
enunciado desde logo no artº 2º CPTA
como um dos eixos fundamentais da nova legislação (orientação desde logo com
uma grande influencia germânica). Relativamente a este ponto, reitero por
completo as palavras do professor VASCO
PEREIRA DA SILVA quando afirma que “ o direito público não deve mais ser o
direito do Estado e dos seus órgãos, mas o dos indivíduos e dos seus direitos,
tal como o Direito Administrativo não deve ser mais que o direito da
Administração, mas o direito dos individuais nas relações administrativas”.
Relativamente
à natureza das posições jurídicas de terceiros, note-se que não se justifica
fazer a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos, pois
verifica-se que esta dicotomia resulta apenas do facto de o ordenamento
jurídico atribuir posições de vantagem aos particulares através das mais
diversas formas, com diversos níveis de intensidade, sendo que em todos esses
casos estamos perante verdadeiros direitos subjectivos, aos quais se deve reconhecer
um grau de protecção idêntico.
Ao
contrário do que se poderia pensar, o princípio da tutela jurisdicional
efectiva não se satisfaz com a garantia de um “qualquer meio de intervenção
processual” que possa ser atribuído aos terceiros que devam ser investidos na
posição de contra interessados no processo, ele exige, de facto, uma paridade
simétrica entre as posições do autor e do contra-interessado com todas as
consequências que daí resultem, nomeadamente no que toca à igualdade entre as
partes (artº 20/4 CRP) e do princípio
do contraditório (32/5 CRP).
Cabe
ainda analisar a figura dos contra-interessados pela sua importância nesta
matéria. Possuindo interesses opostos aos do autor da acção, esta figura vem
consagrada no artº 57 do CPTA que
assume um carácter extraordinariamente amplo. E isto porque abrange não só
aqueles que são directamente afectados pela sentença como também aqueles que
tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado. Ora, isto traduz-se
num aumento considerável do universo dos contra interessados pois a exigência
da mera titularidade de um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado
irá aumentar consideravelmente o numero de terceiros legitimados a figurarem
como partes principais no processo.
Porém,
e permitam-me a critica, esta solução alargada suscita problemas de várias
ordens. Primeiro porque vai onerar de forma significativa a posição do autor,
dado que este tem de indicar na petição inicial todos aqueles que, face à lei,
devam ser considerados contra-interessados (78/2f); depois porque, tendo em
conta as diferenças substanciais, embora não formais, existentes entre estes
contra-interessados, não é correcto que se lhes aplique um regime processual
idêntico. Por ultimo, uma concepção que seja excessivamente ampla de
contra-interessados gera problemas ao nível dos efeitos da sentença, caso se
admita que todos os contra-interessados é imprescindível para que a sentença
possa produzir os seus efeitos normais, então bastará que um não esteja
presente para que esse resultado indesejável ocorra.
Contudo,
é de salientar que, a opção do legislador no caso do artº 68/2 respeitante à
intervenção de contra-interessados na acção de condenação à pratica de acto
devido, apresenta-se bastante ponderada, ainda para mais se tivermos em conta
de que esta problemática ainda se reveste de uma considerável polémica em
ordens jurídicas de outros países.
No
fundo, pode concluir-se que, no que toca à posição dos contra-interessados,
assistiu-se, com a Reforma do Contencioso, a um reforço da sua tutela, quer no
que respeita à legitimidade, quer no que respeita aos poderes de conformação
processual. O
que se assiste no cenário de Contencioso português é, na minha opinião, a uma
crescente posição de paridade simétrica relativamente às partes estruturais,
que são elas o autor e a entidade demandada, panorama esse que não encontra
paralelo noutras ordens jurídicas.
Por
último, cumpre ainda delinear a posição do terceiro que não teve a oportunidade
de interferir no processo, não ficando este vinculado ao caso julgado pelo
facto de não lhe poder ser oposta uma decisão em que não pode participar e em
que, concomitantemente, se decidiu sobre o mérito da relação material
controvertida na qual a sua posição substantiva se integrava.
Raquel Frazão Vaz
Nº 22097
Visto. Bibliografia?
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