domingo, 2 de novembro de 2014

A delimitação do âmbito de jurisdição administrativa: alguns casos de fronteira


O artigo 212.º/3 da CRP contém uma cláusula geral de que todos os litígios que tenham por base uma relação jurídica administrativa devem ser apreciados pelos tribunais administrativos, constituindo, assim, um pressuposto processual relativo à propositura da ação.  Assim o é pois estes tribunais são os mais indicados e especializados para tratar destes litígios. Assim sendo, as questões administrativas têm de ser julgadas por tribunais administrativos, sendo, portanto, fundamental delimitar o âmbito de jurisdição e precisar as suas fronteiras.
Essa delimitação do âmbito de jurisdição administrativa assenta nos artigos 1.º/1 e 4.º do ETAF. São estes preceitos que estabelecem quando é que uma ação deve ser proposta perante a jurisdição administrativa e fiscal e não perante os tribunais judiciais. 
O artigo 1.º/1 tem raiz constitucional (artigo 212/3 da CRP [1] ) e reitera o princípio de que os tribunais administrativos são os competentes para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Já o artigo 4.º faz uma lista exemplificativa das matérias que se encontram incluídas (artigo 4.º/1) ou excluídas (artigo 4.º/2 e 3) da jurisdição administrativa e fiscal. Em muitas matérias que o artigo 4.º elenca trata-se de uma mera aplicação coincidente com o critério do artigo 1.º, ou seja, trata-se de aplicar o critério da existência de um litígio sobre uma relação jurídica administrativa [2] . Existem, no entanto, matérias em que essa convergência não se verifica. Nesses casos importará ter presente que, os dois artigos se articulam como lei geral (o artigo 1.º do ETAF) e lei especial (o artigo 4.º do ETAF). Existindo conflito entre os dois, isto é, sempre que o artigo 4.º do ETAF for mais amplo ou restrito do que o artigo 1.º do ETAF, é aquele que deve prevalecer.
Por conseguinte, pertencerão à jurisdição administrativa todos os litígios que tratem de questões administrativas e cuja matéria não esteja, através das normas especiais do artigo 4.º, atribuídas aos tribunais judiciais. Assim, só matérias residuais caberão no artigo 1.º/1, que, na verdade, funciona em articulação com o artigo 4.º.
O âmbito de jurisdição determina-se, assim, através da articulação dos artigos 212.º/3 da CRP com o artigo 1.º/1 e com o 4º do ETAF.
Contudo, nem sempre a interpretação destes preceitos é isenta de problemas.
Os problemas que surgem quanto à concretização [3]  do artigo 4.º estão relacionados com o facto de o legislador não ter recorrido a grandes categorias, mas sim a uma lista exemplificativa que, naturalmente, despoleta problemas como a lista não ser exaustiva e não prever todos os litígios enquadráveis no âmbito de jurisdição administrativa. Levanta-se, assim, a dúvida quanto a alguns litígios que não estejam aí expressamente previstos. Por outro lado a interpretação desse preceito levanta dificuldades, em virtude da imprecisão dos conceitos utilizados.
Existem, assim, uma série de casos quanto aos quais se coloca a questão sobre a sua inclusão no âmbito da jurisdição administrativa ou a sua recondução à competência dos tribunais comuns. Esses casos são evidentemente numerosos e seria impossível abordá-los a todos.  De seguida procede-se, assim, a uma breve análise de alguns desses casos, que se entendem ser exemplificativos dos problemas relativos às fronteiras da jurisdição administrativa.  
Em todos estes casos o problema central será o mesmo: verificar se, em conformidade com o critério estabelecido nos artigos 212.º/3 da CRP e 1.º/1 do ETAF, se está perante uma relação jurídica administrativa.

1. O primeiro destes casos de fronteira de jurisdições é o caso das sanções administrativas. Uma sanção, que tem finalidade punitiva e que faz incidir uma consequência desvantajosa – como a privação de um direito ou imposição de uma obrigação – sobre um sujeito , que seja aplicação pela Administração Pública encaixa na previsão do artigo 212.º/3 da CRP de relação jurídica administrativa, visto que esta aplicação constitui um ato administrativo, na medida em que é uma decisão de um órgão da Administração, praticado ao abrigo de normas de direito público, que visa produzir efeitos numa situação jurídica individual e concreta. Estamos, assim, perante litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. No entanto, o legislador reconduziu estes problemas ao âmbito de jurisdição dos tribunais comuns. Poder-se-ia levantar a dúvida sobre se essa decisão do legislador seria ou não contrária à Constituição. Contudo, a doutrina, o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional têm rejeitado esse entendimento. O critério avançado é o seguinte: o legislador poderá cometer aos tribunais comuns o julgamento em recurso das decisões administrativas que aplicam sanções, desde que isso não fira o núcleo essencial da jurisdição administrativa. Existem, aliás, razões de praticabilidade neste sentido, pois se todos os litígios emergentes de sanções administrativas fossem deslocados para a jurisdição administrativa, então haveria grandes dificuldades em obter decisões em tempo útil.

2. Quanto à matéria da atividade contratual o critério de delimitação é o da sujeição a normas  de direito público [4] , ou relativas à própria execução do contrato ou relativas aos procedimentos pré-contratuais, sujeição essa que tem uma efeito de contágio – consagrando-se, assim, a teoria da invalidade consequente- sobre todo o regime aplicável ao contrato. Cabem aqui os contratos celebrados entre pessoas coletivas de direito público, artigo 4.º/1/j); questões de interpretação, validade e execução de contratos que estejam sujeitos a normas de direito público, artigo 4.º/1/f); questões  de apreciação de validade de atos pré-contratuais em procedimentos regulados por normas de direito público, artigo 4/1/e), verificação da invalidade de quaisquer contratos que resultem da invalide do ato administrativo em que se fundou a sua celebração, artigo 4/1/b); e questões de interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei que os submeta a normas de direito público, artigo 4.º/1/e). Isto aplicar-se-á mesmo que, no demais, os contratos celebrados pela administração se qualifiquem como contratos de direito privado (os quais, como é sabido, não deixam de estar sujeitos a normas de direito público, designadamente na sua formação, como esclarece a «teoria dos dois níveis» (Zweistuffentheorie)) [5]. 

3. Outro problema de fronteira é-nos colocado pelos atos administrativos conformadores de relações jurídicas entre particulares. Estes atos, sendo actos administrativos, não regulam as relações entre privados e a administração, mas antes estabelecem direitos e deveres entre dois sujeitos particulares. Importa, assim, saber se estes actos administrativos caiem na competência dos tribunais administrativos ou judiciais. será o problema das relações jurídicas entre privados com efeito conformador pelo ato administrativo, ou seja, o problema de saber se uma atividade de um particular autorizada através de ato jurídico-público de entidades administrativas mas lesiva de direitos ou posições jurídicas de terceiros, cai na competência dos tribunais administrativos ou judiciais. 
Neste caso, de acordo com Mafalda Carmona [6] , não basta a invocação de um ato administrativo para estarmos perante uma relação jurídico-administrativa, pelo que nem sempre será possível aplicar o artigo 212.º/3 e o artigo 1.º/1. Haverá assim que distinguir entre dois tipos de problemas: os problemas relativos ao próprio ato e os problemas relativos à observância dos direitos e deveres pelos particulares. Os primeiros serão da competência dos tribunais administrativos, os segundos dos tribunais comuns. Este problema mostra-se especialmente delicado em casos de responsabilidade civil por danos causados por um particular ao abrigo de uma autorização concedida por um ato administrativo conformador das relações entre particulares. Em aplicação do critério que se acaba de identificar, aí haverá que distinguir: caso os danos sejam causados diretamente pela autorização concedida, devemos entender que o litígio cai no âmbito da jurisdição administrativa. Mas se o conteúdo do ato é lícito, mas os particulares causam danos ao incumprirem os deveres a que são vinculados, aí os tribunais competentes serão os tribunais comuns, e isto ainda que a fonte dos deveres violado seja um ato administrativo.


O critério que nos permite distinguir entre o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e o âmbito de jurisdição dos tribunais judiciais decorre, primariamente, do artigo 212.º/3 da CRP que contém um cláusula geral de que os tribunais administrativos apreciam todos os litígios decorrentes de uma relação jurídico-administrativa. Como já vimos, esta cláusula tem carácter relativo, pelo que é possível ampliar ou diminuir o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos consoante seja necessário, mas sempre respeitando o núcleo essencial da jurisdição administrativa. Além desta cláusula temos também o artigo 1.º/1 do ETAF que é uma concretização do preceito constitucional e que tem uma enumeração positiva e negativa no artigo 4.º do ETAF. A articulação entre estas normas permite-nos chegar a um critério baseado na relação jurídica administrativa, por vezes ampliada ou diminuída, mas que nem sempre é isento de problemas. Existem, assim, alguns casos de fronteira de jurisdições que nos mostram a necessidade de o legislador melhor concretizar as situações que cabem , ou não, no âmbito de jurisdição administrativa.



[1] José Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), pg. 101 ss. , o A. discute se no artigo 212.º/3 da CRP está consagrada uma reserva material absoluta de jurisdição no duplo sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar essas questões. A doutrina tem entendido que é possível atribuir aos tribunais administrativos a resolução de litígios que não estejam incluídos na cláusula do artigo 212.º/3. Quanto à outra questão, a posição é a de que no preceito constitucional não há uma proibição absoluta de que outros tribunais que não administrativos (v.g. judiciais) julguem litígios materialmente administrativos; é, antes, um modelo típico suscetível de desvios e adaptações, que apenas obriga ao respeito do seu núcleo essencial.
[2] Mário Aroso de Almeida, Manual de processo administrativo, p. 156 ;  José Manual Santos Botelho, Contencioso Administrativo Anotado, p. 25 ss. De forma a poder aplicar-se a cláusula material de jurisdição dos tribunais administrativos consagrada no artigo 212.º/3 da CRP, é necessário percebermos o que se entende por relação jurídica administrativa. Trata-se, essencialmente, de relações que se estabelecem entre duas pessoas coletivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, em que pelo menos uma delas atua no exercício de um poder de autoridade, tendo em vista a realização de um interesse público ou agindo no cumprimento de deveres administrativos.
No entanto, é importante referir que o legislador também submeteu à jurisdição administrativa litígios independentemente de se verificar neles quaisquer vestígios de administratividade, ou seja, nalguns casos usou critérios objetivos, enquanto noutros fez prevalecer critérios subjetivos; José Vieira de Andrade, Âmbito de jurisdição administrativa, CJA, pg. 10;  Mafalda Carmona, Acto administrativo com efeito conformador, pg. 216; Vasco Pereira da Silva, Em busca do acto administrativo perdido,  p. 149-50.
[3] José Vieira de Andrade, A justiça administrativa (Lições), p. 112
[4] Maria João Estorninho, A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa, CJA, p. 6
[5] Maria João Estorninho, A fuga para o direito privado, Almedina, Coimbra, 1999, p. 109 ss.
[6]Mafalda Carmona, Acto administrativo com efeito conformador, p. 290

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