Antes de mais, cumpre
explicitar o mais sumariamente possível o que se entende por processos
cautelares e as especificidades do seu regime para que depois possamos avaliar as semelhanças que surgiram com a Reforma do Contencioso Administrativo.
O processo cautelar consiste
na adopção de providências que impeçam
que, durante a pendência de determinado processo administrativo, se perca a
utilidade da decisão que o mesmo pretende obter. Este é um processo instrumental à acção principal, o que
explica que só possa ser desencadeado por quem tenha legitimidade para intentar
o processo principal e que dependa da causa deste último (veja-se os arts. 112º
e 113 º do CPTA). A este propósito, já a lição clássica de CALAMANDREI
se referia a estas medidas como “instrumentos do instrumento” que é o processo.
Na minha opinião, esta é a característica que verdadeiramente identifica a
tutela cautelar (concordando com ISABEL CELESTE FONSECA).
Esta característica é ainda revelada pela caducidade desta tutela (art.123
CPTA) sempre que não seja instaurada a ação principal ou quando esta se
encerrar.
Este é também um processo provisório (quanto ao tempo de duração de decisão e quanto ao seu
conteúdo), que visa dar resposta a uma situação de interinidade, o que permite
ao tribunal a sua revogação, alteração ou substituição enquanto estiver
pendente a acção principal. Porém, isto não significa que perca eficácia
num momento posterior, pois a providência pode ser confirmada por uma resolução
que vá ao seu encontro. Ainda assim, a determinação do seu conteúdo deve ser
sensível à própria alteração das circunstancias que levaram à sua emanação (
veja-se o art. 124/1º CPTA).
Note-se que as
providencias cautelares podem antecipar, provisoriamente, a produção do efeito
que se pretende com a acção que lhe dá origem.
A contrário, deve ter-se em atenção que estas não podem, de forma
alguma, antecipar a titulo definitivo, a
constituição de situações que só a decisão final pode determinar. FERNANDA
MAÇÃS aponta
para a necessidade de se interpretar
este limite no sentido de entender que “não
subsiste uma proibição genérica de antecipação por via cautelar do conteúdo de
uma eventual sentença favorável, mas apenas quando essa antecipação for
irreversível para o futuro”.
De referir que o
legislador, no nosso CPTA, deu uma importância central à distinção entre
providencia antecipatória e conservatória. As antecipatórias são aquelas
destinadas a alterar o status quo,
com o objectivo de obter, antes que o dano se verifique, um bem a que o
particular tenha direito. Já as providencias cautelares conservatórias são
aquelas destinadas a manter o status quo,
a fim de reter, na posse ou na titularidade do particular, um direito a um bem
de que ele já disponha, mas que está ameaçado de perder. Esta distinção e a sua
relação com o fumus bónus iuris já
foi objecto de análise pelo Supremo Tribunal Administrativo, no julgamento do
processo cautelar relativo à construção do Túnel do Marquês. Em causa esteve a
análise do grau de exigência ao nível do fumus
bonis iuris nos dois tipos de tutela pois o legislador, a este nível, é
mais exigente nas providências antecipatórias. Esta discrepância tem a sua
razão de ser uma vez que estas últimas, como refere CARLA
AMADO GOMES, “ activam o
desenvolvimento da situação controvertida, alterando o estado de coisa
existente no momento da apresentação do pedido, consumindo, total ou
parcialmente, o conteúdo da decisão final”.
Do mesmo modo (e intimamente ligado à ideia de
instrumentalidade) não pode o juiz atribuir através deste processo mais do que
lhe é permitido pela decisão do processo principal. Tal entendimento é
visível pelo teor da decisão do TAF de
Lisboa, 2º Juízo, no processo 2916/04.6 BELSB de 6/12/04 no qual o Tribunal
indefere liminarmente um pedido cautelar de suspensão de eficácia de um acto
administrativo por lhe faltar instrumentalidade relativamente à ação principal.
A principal ideia a reter é a de que, tal como
os Tribunais Judiciais, também os Tribunais Administrativos estão sujeitos a ocorrências lentas das suas acções, logo, o que se pretende é que este periculum in mora não venha comprometer
o efeito útil da acção, obtendo-se, com carácter de urgência, uma decisão sobre
o mérito da questão colocada. Mas este problema de lentidão e ineficiência não é
de agora e já existia nos tribunais administrativos anteriormente à Reforma. E
como contribuía a antiga tutela cautelar
administrativa para resolver este problema?
Numa tentativa de
responder a esta questão, cabe agora fazer uma análise comparativa entre o actual
regime da tutela cautelar e aquele que existia antes da Reforma do Contencioso
Administrativo. Eu diria que as mudanças são gritantes. No sistema anterior
apenas havia a figura específica da “suspensão da eficácia do acto
administrativo”, reconhecidamente um instrumento muito limitado para a protecção
dos particulares perante a Administração Pública. Para a concessão desta tutela protectora era
necessário que houvesse uma irreparabilidade
do dano decorrente da decisão do acto impugnado, e que a decretação da
providência não originasse um prejuízo grave para o interesse público. Ou seja,
não existia qualquer margem para uma ponderação de interesses e para um juízo
acerca do fumus boni iuris, tão
preciosos para os interessados. Em relação ao objecto, estas só podiam ser
adoptadas para os actos administrativos de conteúdo positivo. Posto isto, sobressaía uma grande necessidade
de “dar uma nova vida às providencias cautelares”, superando a matiz objectivista
do regime e dando-lhe um carácter subjectivo.
Até a própria Constituição parecia estar de acordo quanto a este desígnio, no
seu artº 20 nº1 que consagra o direito de acesso aos tribunais, o que levou
grande parte da doutrina (como MIGUEL PRATA ROQUE e
VIEIRA DE ANDRADE) a defender que aqui
se incluía a possibilidade de recorrer a uma tutela que evitasse os prejuízos
resultantes da demora do processo.
No fundo, tecer uma análise
comparativa é notar que se passou de um modelo de tutela cautelar monista e,
por isso mesmo, notoriamente incapaz de assegurar provisoriamente bens,
situações jurídicas, direitos e interesses legalmente protegidos para um
sistema de protecção cautelar pleno. Este último veio acolher medidas, quer de
tipo conservatório quer de tipo antecipatório, e veio também abranger já não apenas
o acto mas também todas as demais modalidades da actuação administrativa- normas
regulamentares, contratos, operações materiais e formas de actuação informal.
Este novo sistema, embora fortemente inspirado no Processo Civil, não se deixou
confinar a ele, tendo, pelo contrario, ousado inovar, no respeito pelo génio
próprio do processo administrativo.
Mas onde é mais notável
esta “revitalização” do regime é, sem margem de dúvidas, nos seus requisitos de
decretação.
Para começar, uma das
novidades da reforma foi a reformulação do critério do periculum in mora. Ao
lado da tradicional concepção do “prejuízo de difícil reparação” constante no artº
76/1/a da legislação anterior (LPTA), o CPTA traz, no seu artº 120/1 als.b) e
c) a concepção do periculum in mora
como o “fundado receio da constituição do facto consumado”, o que veio ampliar
significativamente o seu conteúdo.
O que se pretende é
evitar que o tempo consumido com a boa decisão da acção principal possa
traduzir-se num “verdadeiro escárnio à Justiça”,( expressão utilizada por JOSÉ
ALBERTO DOS REIS) permitindo-se ao requerente que
obtenha uma decisão provisória que impeça que a sentença proferida não se
traduza numa mera tutela platónica dos interesses daquele. A reforma do
Contencioso Administrativo veio beber os ensinamentos do Processo Civil. Na
mesmo linha de ALBERTO DOS REIS,
penso que se deve recusar aqui a necessidade de um juízo de certeza sobre o
perigo de dano para o requerente pois isso seria incompatível com o carácter provisório da providência cautelar. O que se exige ao requerente é que
demonstre a probabilidade da ocorrência de danos, por força da demora
processual inerente ao processo principal. Note-se ainda que, ao contrário do
que sucede no Processo Civil, o contencioso administrativo não exige que os
prejuízos sejam graves e dificilmente reparáveis, bastando-se com o
preenchimento deste ultimo qualificativo. Assim, é interdito ao juiz cautelar a
recusa de providência com fundamento na diminuta gravidade dos prejuízos a
sofrer pelo requerente.
Por outro lado, a
grande originalidade da disciplina do fumus
bónus iuris no CPTA consiste em estabelecer uma graduação do critério para
a sua identificação, conferindo-lhe uma importância decisiva em situações de
manifesta procedência do pedido principal e estabelecendo uma diversa
formulação consoante esteja em causa a adopção de uma providência cautelar
antecipatória ou conservatória. A principal consequência de sumariedade da
tutela cautelar traduz-se numa atenuação do grau de prova necessário para
justificar a decretação de uma providencia. Será, desta forma, suficiente, a
mera justificação ou demonstração de uma verosimilhança entre os factos
alegados pelo requerente e a verdade fáctica.
A verosimilhança dependerá da formulação de um juízo favorável quanto ao
resultado a obter no processo principal, ainda que não assente num juízo de certeza.
A meu ver, é uma concepção assente numa “probabilidade séria” a que melhor aqui
se enquadra pois a mera possibilidade de procedência da acção principal é
compatível com o carácter sumário e instrumental das providências cautelares
administrativas.
Outra das inovações do
CPTA foi a de adicionar como requisito à concessão da providencia um outro
pressuposto: a “ponderação de interesses
públicos e privados em presença”.
Agora, mesmo verificada a inexistência do fumus bónus iuris e do periculum
in mora, determina o art.º 120 nº2, que o julgador deve ponderar os
interesses públicos e privados in casu,
podendo recusar a concessão da providência quando conclua que os danos que
resultariam da sua concessão seriam superiores àqueles que porventura pudessem
ocorrer diante da sua recusa, afastada a ponderação apenas no caso da aparência
de procedência da acção administrativa principal ser manifesta. Alguns autores
têm-se oposto a esta subjectivização do contencioso administrativo, que, no seu
modo de ver, tenderia a esquecer a tutela da legalidade e do interesse publico
em prol dos interesses individualizados dos administrados. Para estes autores,
o juiz ficará colocado entre a espada do interesse público e a parede dos
direitos subjectivos dos administrados. Note-se que este critério apenas é apto
a afastar a decretação de providências, pelo que tem natureza absolutamente
excepcional. Só após verificado o
preenchimento dos requisitos positivos é que o juiz cautelar deverá ponderar as
consequência que a concessão da providencia comportará para os interesses
públicos e privados em conflito (art.º 120/2 CPTA). Assim, o grau de convicção
necessário à verificação da superioridade dos interesses dos requeridos não
pode deixar de ser um juízo de certeza.
Em relação a questão do controlo da discricionariedade
judicial, é de salientar que a formula alargada concedida pelo legislador no
art.º 112/1 CPTA confere aos juízes ampla margem de discricionariedade ,
ficando os tribunais habilitados a impor à Administração, a adopção de uma
conduta positiva ou negativa (ainda que provisória).
Perante estas premissas,
impõe-se a questão: será esta nova vida
dada ao procedimento cautelar na reforma do contencioso administrativo uma vida
perfeita?
Ainda que a
superioridade do novo modelo de justiça administrativa seja globalmente
indiscutível, uma reforma tão profunda não poderia efectivamente deixar de
comportar, a par da imensa promessa, uns quantos riscos com os quais será
necessário lidar.
Na verdade, não existem
dúvidas de que às boas reformas segue-se, frequentemente, um período de corrida
desenfreada ao novo sistema, cujo efeito perverso é o de anular, na prática,
muitas das virtualidades que as soluções legislativas continham em teoria. O
que é certo é que a justiça administrativa não está imune a tais excessos e tem
vindo a banalizar-se o recurso à tutela cautelar administrativa. Prova disso é
o numero preocupante de pedidos
cautelares que vêm dando entrada nos nossos tribunais, ao abrigo da generosa
cláusula do numerus clausus. Ora, a
lógica jurídica diz-me que o abuso continuado dos meios cautelares resultará no
congestionamento dos tribunais e no enfraquecimento da sua capacidade de
oferecer protecção a posições jurídicas efectivamente merecedoras de tutela.
Posto isto, o juiz urge aqui como o responsável pela “salvação” desta “nova
vida” do procedimento cautelar. A ele cabe-lhe a recusa da concessão da providência
quando esta se manifeste infundada, a
responsabilização do litigante pelos danos provocados em caso de dolo e ainda,
pela sua condenação em multa em caso de litigância de má fé. O juiz deve ser “o
cobrador” do preço a pagar pelos litigantes levianos que afectam a capacidade do
sistema.
Mas o juiz não tem aqui
o “monopólio da salvação”. A nova vida da protecção cautelar no âmbito da
justiça administrativa dependerá do bom senso dos seus vários intérpretes e
aplicadores. Na verdade, temo a banalização da justiça cautelar que, ao tudo
tornar urgente, acabará por consumir internamente as garantias jurídicas que a
reforma aspirou reforçar e por despedaçar as expectativas legítimas de todos
aqueles que verdadeiramente acreditam na capacidade efectiva de resposta da
Justiça Administrativa. Mas esperemos que esta nova e funcional vida da tutela
cautelar administrativa seja longa, tão longa quanto é grande a sua importância
na lide Administrativa.
Raquel Frazão Vaz
Aluna nrº 22097
Visto. (tem alguns erros)
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