segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Uma nova vida para a Tutela Cautelar no Direito Administrativo



Antes de mais, cumpre explicitar o mais sumariamente possível o que se entende por processos cautelares e as especificidades do seu regime para que depois possamos avaliar as semelhanças que surgiram com a Reforma do Contencioso Administrativo.

O processo cautelar consiste na  adopção de providências que impeçam que, durante a pendência de determinado processo administrativo, se perca a utilidade da decisão que o mesmo pretende obter. Este é um processo instrumental à acção principal, o que explica que só possa ser desencadeado por quem tenha legitimidade para intentar o processo principal e que dependa da causa deste último (veja-se os arts. 112º e 113 º do CPTA). A este propósito, já a lição clássica de CALAMANDREI se referia a estas medidas como “instrumentos do instrumento” que é o processo. Na minha opinião, esta é a característica que verdadeiramente identifica a tutela cautelar (concordando com ISABEL CELESTE FONSECA). Esta característica é ainda revelada pela caducidade desta tutela (art.123 CPTA) sempre que não seja instaurada a ação principal ou quando esta se encerrar.

 Este é também um processo provisório (quanto ao tempo de duração de decisão e quanto ao seu conteúdo), que visa dar resposta a uma situação de interinidade, o que permite ao tribunal a sua revogação, alteração ou substituição enquanto estiver pendente a acção  principal.  Porém, isto não significa que perca eficácia num momento posterior, pois a providência pode ser confirmada por uma resolução que vá ao seu encontro. Ainda assim, a determinação do seu conteúdo deve ser sensível à própria alteração das circunstancias que levaram à sua emanação ( veja-se o art. 124/1º CPTA).
Note-se que as providencias cautelares podem antecipar, provisoriamente, a produção do efeito que se pretende com a acção que lhe dá origem.  A contrário, deve ter-se em atenção que estas não podem, de forma alguma,  antecipar a titulo definitivo, a constituição de situações que só a decisão final pode determinar. FERNANDA MAÇÃS aponta para  a necessidade de se interpretar este limite no sentido de entender que “não subsiste uma proibição genérica de antecipação por via cautelar do conteúdo de uma eventual sentença favorável, mas apenas quando essa antecipação for irreversível para o futuro”.

De referir que o legislador, no nosso CPTA, deu uma importância central à distinção entre providencia antecipatória e conservatória. As antecipatórias são aquelas destinadas a alterar o status quo, com o objectivo de obter, antes que o dano se verifique, um bem a que o particular tenha direito. Já as providencias cautelares conservatórias são aquelas destinadas a manter o status quo, a fim de reter, na posse ou na titularidade do particular, um direito a um bem de que ele já disponha, mas que está ameaçado de perder. Esta distinção e a sua relação com o fumus bónus iuris já foi objecto de análise pelo Supremo Tribunal Administrativo, no julgamento do processo cautelar relativo à construção do Túnel do Marquês. Em causa esteve a análise do grau de exigência ao nível do fumus bonis iuris nos dois tipos de tutela pois o legislador, a este nível, é mais exigente nas providências antecipatórias. Esta discrepância tem a sua razão de ser uma vez que estas últimas, como refere CARLA AMADO GOMES,  activam o desenvolvimento da situação controvertida, alterando o estado de coisa existente no momento da apresentação do pedido, consumindo, total ou parcialmente, o conteúdo da decisão final”.

 Do mesmo modo (e intimamente ligado à ideia de instrumentalidade) não pode o juiz atribuir através deste processo mais do que lhe é permitido pela decisão do processo principal. Tal entendimento é visível  pelo teor da decisão do TAF de Lisboa, 2º Juízo, no processo 2916/04.6 BELSB de 6/12/04 no qual o Tribunal indefere liminarmente um pedido cautelar de suspensão de eficácia de um acto administrativo por lhe faltar instrumentalidade relativamente à ação principal.

 A principal ideia a reter é a de que, tal como os Tribunais Judiciais, também os Tribunais Administrativos estão sujeitos a ocorrências lentas das suas acções, logo, o que se pretende é que este periculum in mora não venha comprometer o efeito útil da acção, obtendo-se, com carácter de urgência, uma decisão sobre o mérito da questão colocada. Mas este problema de lentidão e ineficiência não é de agora e já existia nos tribunais administrativos anteriormente à Reforma. E como contribuía  a antiga tutela cautelar administrativa para resolver este problema?

Numa tentativa de responder a esta questão, cabe agora fazer uma análise comparativa entre o actual regime da tutela cautelar e aquele que existia antes da Reforma do Contencioso Administrativo. Eu diria que as mudanças são gritantes. No sistema anterior apenas havia a figura específica da “suspensão da eficácia do acto administrativo”, reconhecidamente um instrumento muito limitado para a protecção dos particulares perante a Administração Pública.  Para a concessão desta tutela protectora era necessário que  houvesse uma irreparabilidade do dano decorrente da decisão do acto impugnado, e que a decretação da providência não originasse um prejuízo grave para o interesse público. Ou seja, não existia qualquer margem para uma ponderação de interesses e para um juízo acerca do fumus boni iuris, tão preciosos para os interessados. Em relação ao objecto, estas só podiam ser adoptadas para os actos administrativos de conteúdo positivo.  Posto isto, sobressaía uma grande necessidade de “dar uma nova vida às providencias cautelares”, superando a matiz objectivista do regime e dando-lhe  um carácter subjectivo. Até a própria Constituição parecia estar de acordo quanto a este desígnio, no seu artº 20 nº1 que consagra o direito de acesso aos tribunais, o que levou grande parte da doutrina (como MIGUEL PRATA ROQUE e VIEIRA DE ANDRADE) a defender que aqui se incluía a possibilidade de recorrer a uma tutela que evitasse os prejuízos resultantes da demora do processo.

No fundo, tecer uma análise comparativa é notar que se passou de um modelo de tutela cautelar monista e, por isso mesmo, notoriamente incapaz de assegurar provisoriamente bens, situações jurídicas, direitos e interesses legalmente protegidos para um sistema de protecção cautelar pleno. Este último veio acolher medidas, quer de tipo conservatório quer de tipo antecipatório, e veio também abranger já não apenas o acto mas também todas as demais modalidades da actuação administrativa- normas regulamentares, contratos, operações materiais e formas de actuação informal. Este novo sistema, embora fortemente inspirado no Processo Civil, não se deixou confinar a ele, tendo, pelo contrario, ousado inovar, no respeito pelo génio próprio do processo administrativo.
Mas onde é mais notável esta “revitalização” do regime é, sem margem de dúvidas, nos seus requisitos de decretação.

Para começar, uma das novidades da reforma foi a reformulação do critério do periculum in mora. Ao lado da tradicional concepção do “prejuízo de difícil reparação” constante no artº 76/1/a da legislação anterior (LPTA), o CPTA traz, no seu artº 120/1 als.b) e c) a concepção do periculum in mora como o “fundado receio da constituição do facto consumado”, o que veio ampliar significativamente o seu conteúdo.
O que se pretende é evitar que o tempo consumido com a boa decisão da acção principal possa traduzir-se num “verdadeiro escárnio à Justiça”,( expressão utilizada por JOSÉ ALBERTO DOS REIS) permitindo-se ao requerente que obtenha uma decisão provisória que impeça que a sentença proferida não se traduza numa mera tutela platónica dos interesses daquele. A reforma do Contencioso Administrativo veio beber os ensinamentos do Processo Civil. Na mesmo linha de ALBERTO DOS REIS, penso que se deve recusar aqui a necessidade de um juízo de certeza sobre o perigo de dano para o requerente pois isso seria incompatível com o carácter provisório da providência cautelar. O que se exige ao requerente é que demonstre a probabilidade da ocorrência de danos, por força da demora processual inerente ao processo principal. Note-se ainda que, ao contrário do que sucede no Processo Civil, o contencioso administrativo não exige que os prejuízos sejam graves e dificilmente reparáveis, bastando-se com o preenchimento deste ultimo qualificativo. Assim, é interdito ao juiz cautelar a recusa de providência com fundamento na diminuta gravidade dos prejuízos a sofrer pelo requerente.

Por outro lado, a grande originalidade da disciplina do fumus bónus iuris no CPTA consiste em estabelecer uma graduação do critério para a sua identificação, conferindo-lhe uma importância decisiva em situações de manifesta procedência do pedido principal e estabelecendo uma diversa formulação consoante esteja em causa a adopção de uma providência cautelar antecipatória ou conservatória. A principal consequência de sumariedade da tutela cautelar traduz-se numa atenuação do grau de prova necessário para justificar a decretação de uma providencia. Será, desta forma, suficiente, a mera justificação ou demonstração de uma verosimilhança entre os factos alegados pelo requerente e a verdade fáctica.  A verosimilhança dependerá da formulação de um juízo favorável quanto ao resultado a obter no processo principal, ainda que não assente num juízo de certeza. A meu ver, é uma concepção assente numa “probabilidade séria” a que melhor aqui se enquadra pois a mera possibilidade de procedência da acção principal é compatível com o carácter sumário e instrumental das providências cautelares administrativas.

Outra das inovações do CPTA foi a de adicionar como requisito à concessão da providencia um outro pressuposto: a “ponderação de interesses públicos e privados em presença”.  Agora, mesmo verificada a inexistência do fumus bónus iuris e do periculum in mora, determina o art.º 120 nº2, que o julgador deve ponderar os interesses públicos e privados in casu, podendo recusar a concessão da providência quando conclua que os danos que resultariam da sua concessão seriam superiores àqueles que porventura pudessem ocorrer diante da sua recusa, afastada a ponderação apenas no caso da aparência de procedência da acção administrativa principal ser manifesta. Alguns autores têm-se oposto a esta subjectivização do contencioso administrativo, que, no seu modo de ver, tenderia a esquecer a tutela da legalidade e do interesse publico em prol dos interesses individualizados dos administrados. Para estes autores, o juiz ficará colocado entre a espada do interesse público e a parede dos direitos subjectivos dos administrados. Note-se que este critério apenas é apto a afastar a decretação de providências, pelo que tem natureza absolutamente excepcional. Só após  verificado o preenchimento dos requisitos positivos é que o juiz cautelar deverá ponderar as consequência que a concessão da providencia comportará para os interesses públicos e privados em conflito (art.º 120/2 CPTA). Assim, o grau de convicção necessário à verificação da superioridade dos interesses dos requeridos não pode deixar de ser um juízo de certeza.
Em relação  a questão do controlo da discricionariedade judicial, é de salientar que a formula alargada concedida pelo legislador no art.º 112/1 CPTA confere aos juízes ampla margem de discricionariedade , ficando os tribunais habilitados a impor à Administração, a adopção de uma conduta positiva ou negativa (ainda que provisória).

Perante estas premissas, impõe-se a questão: será esta nova vida dada ao procedimento cautelar na reforma do contencioso administrativo uma vida perfeita?

Ainda que a superioridade do novo modelo de justiça administrativa seja globalmente indiscutível, uma reforma tão profunda não poderia efectivamente deixar de comportar, a par da imensa promessa, uns quantos riscos com os quais será necessário lidar.
Na verdade, não existem dúvidas de que às boas reformas segue-se, frequentemente, um período de corrida desenfreada ao novo sistema, cujo efeito perverso é o de anular, na prática, muitas das virtualidades que as soluções legislativas continham em teoria. O que é certo é que a justiça administrativa não está imune a tais excessos e tem vindo a banalizar-se o recurso à tutela cautelar administrativa. Prova disso é o numero preocupante de  pedidos cautelares que vêm dando entrada nos nossos tribunais, ao abrigo da generosa cláusula do numerus clausus. Ora, a lógica jurídica diz-me que o abuso continuado dos meios cautelares resultará no congestionamento dos tribunais e no enfraquecimento da sua capacidade de oferecer protecção a posições jurídicas efectivamente merecedoras de tutela. Posto isto, o juiz urge aqui como o responsável pela “salvação” desta “nova vida” do procedimento cautelar. A ele cabe-lhe a recusa da concessão da providência quando esta se manifeste infundada,  a responsabilização do litigante pelos danos provocados em caso de dolo e ainda, pela sua condenação em multa em caso de litigância de má fé. O juiz deve ser “o cobrador” do preço a pagar pelos litigantes levianos que afectam a capacidade do sistema.
Mas o juiz não tem aqui o “monopólio da salvação”. A nova vida da protecção cautelar no âmbito da justiça administrativa dependerá do bom senso dos seus vários intérpretes e aplicadores. Na verdade, temo a banalização da justiça cautelar que, ao tudo tornar urgente, acabará por consumir internamente as garantias jurídicas que a reforma aspirou reforçar e por despedaçar as expectativas legítimas de todos aqueles que verdadeiramente acreditam na capacidade efectiva de resposta da Justiça Administrativa. Mas esperemos que esta nova e funcional vida da tutela cautelar administrativa seja longa, tão longa quanto é grande a sua importância na lide Administrativa.


Raquel Frazão Vaz
Aluna nrº 22097

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