Ultrapassada e
encaminhada para o “Museu do Contencioso Administrativo”, a figura do recurso
de anulação é, hoje, a acção administrativa especial de impugnação do acto
administrativo.
Neste trabalho
analisaremos o teor da decisão do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
0140/09 de 16 de Dezembro de 2009, no qual releva a questão da impugnabilidade
dos actos administrativos.
Cabe começar por
contextualizar o Acórdão supra referido. A Ministra da Justiça publicou um
Despacho no Diário da República em que autorizou e homologou a abertura do
concurso para atribuição de licenças de cartório notarial. Após a publicação, a
autora, adiante A, propõe uma acção de impugnação do aviso do referido
concurso, em relação à qual, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Castelo Branco, julga procedente a excepção de inimpugnabilidade do despacho da
Ministra da Justiça. A recorre desta decisão e o Acórdão do Tribunal Central do
Norte nega o provimento do recurso. A interpõe recurso por revista excepcional
e o Supremo Tribunal Administrativo concede provimento ao recurso e revoga o
Acórdão recorrido e a decisão da 1ª Instância.
Importa perceber a
questão do Acórdão em análise e fundamentos da sua conclusão.
A questão em debate é
a da impugnabilidade dos actos administrativos, em concreto, a impugnabilidade
do despacho da Ministra da Justiça.
O Acórdão recorrido
fundou a sua decisão na consideração segundo a qual o despacho seria um acto
complexo de formação sucessiva e, por isso, inscrever-se-ia no domínio das
decisões administrativas preliminares, assumindo natureza de acto interno.
Enquanto acto interno seria desprovido de lesividade- actual- não podendo ser
impugnado.
O Acórdão em análise
revela uma posição manifestamente oposta que carece de alguns esclarecimentos.
Pressuposto da
impugnabilidade é estarmos perante um acto administrativo, cujo conceito
podemos encontrar no artigo 120º do Código de Procedimento administrativo,
adiante CPA. O artigo supra citado circunscreve ao conceito de acto
administrativo os actos com conteúdo decisório, o que, parece excluir, a generalidade
dos actos preparatórios do procedimento administrativo.
No entanto, se, por
um lado, o legislador, ao definir o conceito de acto administrativo para
efeitos do CPA, no seu artigo 120º, parece dar espaço a que exista um conceito
de acto administrativo para efeitos contenciosos, o que vem precisamente fazer
o artigo 51º número 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
adiante CPTA. Por outro, na linha daquilo que o Acórdão recorrido já
considerava, apesar do acto administrativo, no caso em apreço, ter natureza de
um acto preparatório, este não deixa de ter conteúdo decisório.
Mas, e aqui já
diverge do Acórdão recorrido, o Acórdão em destaque vem entender que estamos
perante um acto administrativo que, não obstante a sua natureza de decisão
preliminar e preparatória de um procedimento concursal, tem, por si só,
susceptibilidade de produzir efeitos externos sendo, por isto, contenciosamente
impugnável, à luz do artigo 51º/1 do CPTA.
Importante
contextualização é ainda feita no Acórdão. O conceito de acto administrativo
foi elaborado a partir da redacção do artigo 25º da Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos. Na sua fase inicial, entendia-se estarmos perante um
acto administrativo executório e definitivo se este apresentasse uma tripla
definitividade- material, horizontal e vertical.
Com a revisão
constitucional de 1989, o artigo supra citado, passa a ser interpretado segundo
o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa, adiante CRP. O que
veio, inevitavelmente, alterar o paradigma da discussão da impugnabilidade do
acto administrativo, esta deixa, assim, de colocar-se na esfera da
definitividade para passar a atender-se à lesividade (actual) do mesmo.
Com a entrada em vigor
do CPTA, verifica-se a consagração de acto administrativo para efeitos
contencioso. Tanto a lesividade como a definitividade deixam de constituir
requisito de impugnabilidade, como podemos ler na “Exposição dos Motivos” do
Projecto do CPTA.
Segundo a doutrina
dominante e à luz do artigo 51º/1 do CPTA, a impugnabilidade dos actos
administrativos depende da sua externalidade, isto é, da susceptibilidade de
produzir efeitos jurídicos que se projectam para fora do procedimento,
afectando a Ordem Jurídica exterior- relação Administração-particulares.
É no âmbito da
legitimidade que hoje se coloca a questão da lesividade dos actos
administrativos, devendo sublinhar-se que, esta última, não constitui
contributo da impugnabilidade do acto, de acordo com o Princípio da tutela
judicial efectiva, artigos 2º do CPTA e 268º/4 da CRP.
Assim, concluindo a
linha de pensamento do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo,
contrariamente ao que sustentava o Acórdão recorrido, o acto administrativo em
causa não esgotou a sua eficácia no interior da Administração, tal como o
demonstram as alegações de A e o contexto legal do despacho. Por este motivo,
tem eficácia externa no âmbito da relação Administração-Notários, logo é
impugnável segundo o artigo 51º/1 do CPTA.
Após a apresentação
sucinta daqueles que julgamos ser os pontos essenciais em que se fundou a
decisão do Supremo Tribunal Administrativo, parece-nos importante tecer algumas
considerações nesta matéria.
Perante a tendência
europeia, mesmo em países com sistemas mais paradigmáticos, como França e
Alemanha, de alargamento dos actos administrativos impugnáveis e a
multiplicidade de novas espécies de actos administrativos, o Professor Vasco
Pereira da Silva, conclui pela necessidade de afastamento de quaisquer noções
restritivas de acto administrativo.
Contrariamente à
Escola clássica de lisboa, na qual se destaca o Professor Marcello Caetano, que
distinguia entre conceito amplo de acto administrativo e conceito restritivo de
acto administrativo impugnável, o Professor apresenta um conceito de acto
administrativo que transcrevemos- “Actos
administrativos são todos os que produzam efeitos jurídicos mas, de entre
estes, aqueles cujos efeitos forem susceptíveis de afectar, ou de causar, uma
lesão a outrem, são contenciosamente impugnáveis”.
Ainda na linha de
raciocínio do Professor Vasco Pereira da Silva, importa referir a sua
consideração relativa ao artigo 51º/1 do CPTA.
Apesar da solução do
artigo supra citado ser boa, a formulação é infeliz. E explica, aqui
exigir-se-ia a consagração da dualidade de critérios de impugnação. Estando em
causa uma acção para tutela de um direito, isto é, para defesa de uma posição
jurídica substantiva, o critério de impugnabilidade é determinado pela lesão
dos direitos dos particulares. No caso de uma acção para defesa da legalidade e
do interesse público, o critério é a eficácia externa do acto administrativo. O
critério da impugnabilidade depende, assim, da função e da natureza da acção de
impugnação, podendo estar aqui em causa uma acção jurídico-subjectiva ou uma
acção popular.
Enfim, mesmo que aqui
considerássemos estar perante um acto procedimental, o abandono da ideia de
definitividade horizontal, levou, inequivocamente, à possibilidade de
apreciação dos actos procedimentais. À luz do artigo 51º/1 do CPTA, os actos de
procedimento são susceptiveis de impugnação autónoma.
A título de conclusão
e, após a exposição da matéria em questão, parece-nos pertinente formular
algumas considerações.
O legislador
constitucional consagrou no artigo 268º/4, o Princípio da Tutela Efectiva dos
direitos dos particulares e é evidente a sua incidência, mesmo a título
interpretativo, em toda a legislação do contencioso administrativo. Pode mesmo
falar-se num direito fundamental à impugnação dos actos administrativos lesivos
dos particulares.
A nosso ver, não
podia aqui considerar-se outra decisão senão a presente no Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, parece-nos claro que, a decisão recorrida traduz uma
visão ultrapassada de acto administrativo.
Bibliografia:
Almeida, Mário Aroso, Manual de
Processo Administrativo, 2010, Almedina
Silva, Vasco Pereira, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, Almedina
Ac do STA, 0140/09, de 16 Dezembro de
2009
Rita
Rosário
Visto.
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