quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Acto Administrativo impugnável



  Ultrapassada e encaminhada para o “Museu do Contencioso Administrativo”, a figura do recurso de anulação é, hoje, a acção administrativa especial de impugnação do acto administrativo.
  Neste trabalho analisaremos o teor da decisão do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 0140/09 de 16 de Dezembro de 2009, no qual releva a questão da impugnabilidade dos actos administrativos.
  Cabe começar por contextualizar o Acórdão supra referido. A Ministra da Justiça publicou um Despacho no Diário da República em que autorizou e homologou a abertura do concurso para atribuição de licenças de cartório notarial. Após a publicação, a autora, adiante A, propõe uma acção de impugnação do aviso do referido concurso, em relação à qual, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, julga procedente a excepção de inimpugnabilidade do despacho da Ministra da Justiça. A recorre desta decisão e o Acórdão do Tribunal Central do Norte nega o provimento do recurso. A interpõe recurso por revista excepcional e o Supremo Tribunal Administrativo concede provimento ao recurso e revoga o Acórdão recorrido e a decisão da 1ª Instância.
  Importa perceber a questão do Acórdão em análise e fundamentos da sua conclusão.
  A questão em debate é a da impugnabilidade dos actos administrativos, em concreto, a impugnabilidade do despacho da Ministra da Justiça.
  O Acórdão recorrido fundou a sua decisão na consideração segundo a qual o despacho seria um acto complexo de formação sucessiva e, por isso, inscrever-se-ia no domínio das decisões administrativas preliminares, assumindo natureza de acto interno. Enquanto acto interno seria desprovido de lesividade- actual- não podendo ser impugnado.
  O Acórdão em análise revela uma posição manifestamente oposta que carece de alguns esclarecimentos.
  Pressuposto da impugnabilidade é estarmos perante um acto administrativo, cujo conceito podemos encontrar no artigo 120º do Código de Procedimento administrativo, adiante CPA. O artigo supra citado circunscreve ao conceito de acto administrativo os actos com conteúdo decisório, o que, parece excluir, a generalidade dos actos preparatórios do procedimento administrativo.
 
  No entanto, se, por um lado, o legislador, ao definir o conceito de acto administrativo para efeitos do CPA, no seu artigo 120º, parece dar espaço a que exista um conceito de acto administrativo para efeitos contenciosos, o que vem precisamente fazer o artigo 51º número 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, adiante CPTA. Por outro, na linha daquilo que o Acórdão recorrido já considerava, apesar do acto administrativo, no caso em apreço, ter natureza de um acto preparatório, este não deixa de ter conteúdo decisório.
  Mas, e aqui já diverge do Acórdão recorrido, o Acórdão em destaque vem entender que estamos perante um acto administrativo que, não obstante a sua natureza de decisão preliminar e preparatória de um procedimento concursal, tem, por si só, susceptibilidade de produzir efeitos externos sendo, por isto, contenciosamente impugnável, à luz do artigo 51º/1 do CPTA.
  Importante contextualização é ainda feita no Acórdão. O conceito de acto administrativo foi elaborado a partir da redacção do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Na sua fase inicial, entendia-se estarmos perante um acto administrativo executório e definitivo se este apresentasse uma tripla definitividade- material, horizontal e vertical.
  Com a revisão constitucional de 1989, o artigo supra citado, passa a ser interpretado segundo o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa, adiante CRP. O que veio, inevitavelmente, alterar o paradigma da discussão da impugnabilidade do acto administrativo, esta deixa, assim, de colocar-se na esfera da definitividade para passar a atender-se à lesividade (actual) do mesmo.
  Com a entrada em vigor do CPTA, verifica-se a consagração de acto administrativo para efeitos contencioso. Tanto a lesividade como a definitividade deixam de constituir requisito de impugnabilidade, como podemos ler na “Exposição dos Motivos” do Projecto do CPTA.
  Segundo a doutrina dominante e à luz do artigo 51º/1 do CPTA, a impugnabilidade dos actos administrativos depende da sua externalidade, isto é, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectam para fora do procedimento, afectando a Ordem Jurídica exterior- relação Administração-particulares.
  É no âmbito da legitimidade que hoje se coloca a questão da lesividade dos actos administrativos, devendo sublinhar-se que, esta última, não constitui contributo da impugnabilidade do acto, de acordo com o Princípio da tutela judicial efectiva, artigos 2º do CPTA e 268º/4 da CRP.
 
  Assim, concluindo a linha de pensamento do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, contrariamente ao que sustentava o Acórdão recorrido, o acto administrativo em causa não esgotou a sua eficácia no interior da Administração, tal como o demonstram as alegações de A e o contexto legal do despacho. Por este motivo, tem eficácia externa no âmbito da relação Administração-Notários, logo é impugnável segundo o artigo 51º/1 do CPTA.
  Após a apresentação sucinta daqueles que julgamos ser os pontos essenciais em que se fundou a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, parece-nos importante tecer algumas considerações nesta matéria.
  Perante a tendência europeia, mesmo em países com sistemas mais paradigmáticos, como França e Alemanha, de alargamento dos actos administrativos impugnáveis e a multiplicidade de novas espécies de actos administrativos, o Professor Vasco Pereira da Silva, conclui pela necessidade de afastamento de quaisquer noções restritivas de acto administrativo.
  Contrariamente à Escola clássica de lisboa, na qual se destaca o Professor Marcello Caetano, que distinguia entre conceito amplo de acto administrativo e conceito restritivo de acto administrativo impugnável, o Professor apresenta um conceito de acto administrativo que transcrevemos- “Actos administrativos são todos os que produzam efeitos jurídicos mas, de entre estes, aqueles cujos efeitos forem susceptíveis de afectar, ou de causar, uma lesão a outrem, são contenciosamente impugnáveis”.
  Ainda na linha de raciocínio do Professor Vasco Pereira da Silva, importa referir a sua consideração relativa ao artigo 51º/1 do CPTA.
  Apesar da solução do artigo supra citado ser boa, a formulação é infeliz. E explica, aqui exigir-se-ia a consagração da dualidade de critérios de impugnação. Estando em causa uma acção para tutela de um direito, isto é, para defesa de uma posição jurídica substantiva, o critério de impugnabilidade é determinado pela lesão dos direitos dos particulares. No caso de uma acção para defesa da legalidade e do interesse público, o critério é a eficácia externa do acto administrativo. O critério da impugnabilidade depende, assim, da função e da natureza da acção de impugnação, podendo estar aqui em causa uma acção jurídico-subjectiva ou uma acção popular.
  Enfim, mesmo que aqui considerássemos estar perante um acto procedimental, o abandono da ideia de definitividade horizontal, levou, inequivocamente, à possibilidade de apreciação dos actos procedimentais. À luz do artigo 51º/1 do CPTA, os actos de procedimento são susceptiveis de impugnação autónoma.
 
  A título de conclusão e, após a exposição da matéria em questão, parece-nos pertinente formular algumas considerações.
  O legislador constitucional consagrou no artigo 268º/4, o Princípio da Tutela Efectiva dos direitos dos particulares e é evidente a sua incidência, mesmo a título interpretativo, em toda a legislação do contencioso administrativo. Pode mesmo falar-se num direito fundamental à impugnação dos actos administrativos lesivos dos particulares.
  A nosso ver, não podia aqui considerar-se outra decisão senão a presente no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, parece-nos claro que, a decisão recorrida traduz uma visão ultrapassada de acto administrativo.












Bibliografia:
Almeida, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina
Silva, Vasco Pereira, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, Almedina
Ac do STA, 0140/09, de 16 Dezembro de 2009


                                                                                                                     Rita Rosário 

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