quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Legitimidade passiva das pessoas colectivas de direito público: o artº10 nº2 do CPTA

Uma das principais inovações introduzidas pela grande reforma do contencioso administrativo foi a atribuição de legitimidade passiva às pessoas colectivas de direito público. Nas acções que tenham por objecto acções ou omissões de uma entidade publica o réu deixou de ser o órgão autor do acto recorrido e passou a ser a pessoa colectiva de direito público ou o ministério (quando esteja em causa a pessoa colectiva Estado).
Diz o artº10 nº2 do CPTA: “Quando a acção tenha por objecto a açcão ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.
Resulta pois do preceito transcrito que em todas as acções intentadas contra entidades públicas a legitimidade passiva corresponde à pessoa colectiva e não ao órgão que dela faça parte e que foi o verdadeiro autor do acto impugnado. Já quando esteja em causa uma conduta activa ou omissiva do Estado a legitimidade passiva é do ministério a cujo órgão seja imputado o acto jurídico.
Cumpre desde já adiantar que discordo em absoluto do novo preceito legal. Cabe então tomar algumas considerações críticas quanto à solução adoptada
Questiono desde logo a própria redação do preceito. Num primeiro momento é atribuída legitimidade passiva às pessoas colectivas de direito público1. Logo de seguida o preceito faz uma ressalva no que toca à legitimidade passiva da pessoa colectiva Estado atribuindo legitimidade aos ministérios. Coloca-se a questão: Qual a razão de ser desta ressalva? Alguns autores atribuem a explicação ao facto de o Estado ter múltiplos representantes e não se poder atribuir a todos eles conjuntamente, ou a só um deles, a defesa da pessoa colectiva em juízo2. Ora ao atribuir legitimidade passiva ao ministério estamos já perante uma cedência em relação à atribuição de legitimidade à pessoa colectiva pública. Se estamos nesta lógica de cedência porque não atribuir logo legitimidade passiva ao órgão autor do acto impugnado? Era afinal uma forma mais eficaz de contornar a complexidade estrutural da pessoa colectiva Estado, pois que também os ministérios não deixam de ter o seu grau de complexidade estrutural. 
Ainda neste contexto de crítica importa considerar a opinião de Alexandra Leitão3,à qual subscrevo na íntegra, que considera estarmos perante um carácter extremamente concentrador de competências na medida em que todo o Contencioso da Administração Directa do Estado é encaminhado para o ministério. Mais uma vez se coloca a questão: não seria mais razoável e vantajoso atribuir a legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto, agora para evitar uma concentração de competências no ministério?
O mesmo argumento se poderá invocar para outras pessoas colectivas de direito público que não o Estado. Sendo sempre demandada a pessoa colectiva de direito público e não o verdadeiro autor do acto não estaremos perante uma verdadeira concentração de competências na pessoa colectiva de direito público?
Um outro argumento que poderemos invocar a favor da atribuição da legitimidade ao autor do acto impugnado, o qual considero o argumento chave nesta defesa, prende-se com o facto de o autor do acto estar mais próximo dele do que a pessoa colectiva de direito público e consequentemente melhor conseguir defender a legalidade do acto impugnado.
Veja-se o seguinte exemplo prático: a Câmara Municipal X pratica um acto administrativo Y. Se o particular impugnar o acto a legitimidade passiva nos termos do artº10 nº2 do CPTA pertence à pessoa colectiva de direito público (neste caso ao Município). Ora não terá o verdadeiro autor do acto melhores possibilidades de levar a cabo a defesa da legalidade do acto impugnado? Sendo ele quem pratica o acto, melhor consegue explicitar quais as razões que o levaram à prática do mesmo e quais os argumentos que melhor defendem o acto. Nestes termos o verdadeiro autor do acto administrativo terá maiores probabilidades de ter sucesso em juízo do que a pessoa colectiva de direito público (que só ira ter acesso aos fundamentos da prática do acto à posteriori. Consideremos também como exemplo o Acórdão do STA de 10/0572007. O Acórdão relata a situação em que os oficiais da Força Aérea, moveram no TAF de Sintra acção administrativa especial contra a Força Aérea pedindo a anulação do despacho do General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA). No entanto foi determinado que a legitimidade passiva pertencia ao ministério da Defesa Nacional. Aplicando o artº10 nº2 do CPTA a decisão não podia ser diferente. Mas não posso deixar de criticar a decisão apresentando as mesmas razões acima elencadas: sendo o CEMFA quem pratica o acto, melhor consegue explicitar quais as razões que o levaram à pratica do mesmo e quais os argumentos que melhor defendem o acto. A legitimidade deveria então pertencer ao verdadeiro autor do acto.
 Era importante uma reforma nesta matéria, alterando a configuração do preceito legal no sentido de atribuir legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto impugnado. Importa recordar que o regime da legitimidade passiva na LPTA antes da Reforma do Contencioso dispunha neste mesmo sentido: era atribuída legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto. E considerações especiais à parte, era uma solução mais prática e vantajosa no sentido de defesa da legalidade do acto impugnado.
Argumentavam as teses contra esta solução dizendo que existiam frequentes dificuldades na identificação correcta do autor do acto impugnado4. No entanto,como afirma e bem Alexandra Leitão5 a regra vertida no artº10 nº2 nem sempre se afigura simples de aplicar para o próprio autor podendo gorar o objectivo de facilitar a identificação da entidade demandada. Veja-se o exemplo dado: quando está em causa um acto ou omissão imputável a um membro do Governo integrado na presidência do Conselho de Ministros ou uma declaração de ilegalidade por omissão de elaboração de um decreto regulamentar cuja iniciativa cabe ao membro do Governo mas cuja competência de aprovação cabe por costume constitucional ao conselho de ministros. Nestes casos nem sempre é fácil determinar a legitimidade passiva.
 Como se pode ver os argumentos elencados na exposição de motivos não são tao decisivos quanto se pensava, colocando este novo regime os mesmos problemas de fundo.
Importa agora considerar que, felizmente, o CPTA elenca alguns artigos que denotam um certo grau de abertura na atribuição de legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto. São exemplo disso mesmo o artº10 nº4 do CPTA, o artº78 nº3 do CPTA  e os artigos 159 nº1 b) e 169 do CPTA. O mesmo caminho deveria seguir o artº10 nº2 do CPTA. Não foi o caso. Resta portanto aguardar por uma revisão da lei no sentido de atribuir a legitimidade passiva na impugnação de actos administrativos ao verdadeito autor do acto.






1-Não é objecto da presente publicação aprofundar o conceito de pessoa colectiva de direito público pelo que não vamos aqui tomar considerações relativamente a este ponto.
2- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol. I, pág. 169
3- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, pag.34
4- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol. I, pág. 167
5- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, pag.33/34

Bibliografia consultada:
- AROSO ALMEIDA, MÁRIO, Manual de Processo Administrativo, 2013, Reimpressão Almedina
- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise, 2º Edição Actualizada, Almedina
- CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ, A Justiça Administrativa, 2012, 12ª edição, Almedina
ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol. I


Margarida Domingues, aluna nº 22217



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