Uma das principais inovações
introduzidas pela grande reforma do contencioso administrativo foi a atribuição
de legitimidade passiva às pessoas colectivas de direito público. Nas acções
que tenham por objecto acções ou omissões de uma entidade publica o réu deixou
de ser o órgão autor do acto recorrido e passou a ser a pessoa colectiva de
direito público ou o ministério (quando esteja em causa a pessoa colectiva
Estado).
Diz o artº10 nº2 do CPTA: “Quando a acção tenha por objecto a açcão ou
omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de
direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja
imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de
praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.
Resulta pois do preceito transcrito
que em todas as acções intentadas contra entidades públicas a legitimidade
passiva corresponde à pessoa colectiva e não ao órgão que dela faça parte e que
foi o verdadeiro autor do acto impugnado. Já quando esteja em causa uma conduta
activa ou omissiva do Estado a legitimidade passiva é do ministério a cujo
órgão seja imputado o acto jurídico.
Cumpre desde já adiantar que
discordo em absoluto do novo preceito legal. Cabe então tomar algumas
considerações críticas quanto à solução adoptada
Questiono desde logo a própria redação
do preceito. Num primeiro momento é atribuída legitimidade passiva às pessoas
colectivas de direito público1.
Logo de seguida o preceito faz uma ressalva no que toca à legitimidade passiva da
pessoa colectiva Estado atribuindo legitimidade aos ministérios. Coloca-se a
questão: Qual a razão de ser desta ressalva? Alguns autores atribuem a explicação
ao facto de o Estado ter múltiplos representantes e não se poder atribuir a
todos eles conjuntamente, ou a só um deles, a defesa da pessoa colectiva em
juízo2. Ora ao atribuir legitimidade passiva ao ministério estamos já
perante uma cedência em relação à atribuição de legitimidade à pessoa colectiva
pública. Se estamos nesta lógica de cedência porque não atribuir logo
legitimidade passiva ao órgão autor do acto impugnado? Era afinal uma forma
mais eficaz de contornar a complexidade estrutural da pessoa colectiva Estado,
pois que também os ministérios não deixam de ter o seu grau de complexidade estrutural.
Ainda neste contexto de crítica
importa considerar a opinião de Alexandra Leitão3,à qual subscrevo
na íntegra, que considera estarmos perante um carácter extremamente
concentrador de competências na medida em que todo o Contencioso da
Administração Directa do Estado é encaminhado para o ministério. Mais uma vez
se coloca a questão: não seria mais razoável e vantajoso atribuir a
legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto, agora para evitar uma
concentração de competências no ministério?
O mesmo argumento se poderá invocar para outras pessoas colectivas de direito público que não o Estado.
Sendo sempre demandada a pessoa colectiva de direito público e não o verdadeiro
autor do acto não estaremos perante uma verdadeira concentração de competências
na pessoa colectiva de direito público?
Um outro argumento que poderemos
invocar a favor da atribuição da legitimidade ao autor do acto impugnado, o
qual considero o argumento chave nesta defesa, prende-se com o facto de o autor
do acto estar mais próximo dele do que a pessoa colectiva de direito público e
consequentemente melhor conseguir defender a legalidade do acto impugnado.
Veja-se o seguinte exemplo prático: a Câmara Municipal X pratica um acto administrativo Y. Se o
particular impugnar o acto a legitimidade passiva nos termos do
artº10 nº2 do CPTA pertence à pessoa colectiva de direito público (neste caso ao
Município). Ora não terá o verdadeiro autor do acto melhores possibilidades de levar a cabo a defesa da legalidade do
acto impugnado? Sendo ele quem pratica o acto, melhor consegue explicitar quais
as razões que o levaram à prática do mesmo e quais os argumentos que melhor
defendem o acto. Nestes termos o verdadeiro autor do acto administrativo terá
maiores probabilidades de ter sucesso em juízo do que a pessoa colectiva de direito
público (que só ira ter acesso aos fundamentos da prática do acto à posteriori.
Consideremos também como exemplo o Acórdão do STA de 10/0572007. O Acórdão
relata a situação em que os oficiais da Força Aérea, moveram no TAF de
Sintra acção administrativa especial contra a Força Aérea pedindo a anulação do
despacho do General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA). No
entanto foi determinado que a legitimidade passiva pertencia ao ministério da
Defesa Nacional. Aplicando o artº10 nº2 do CPTA a decisão não podia ser diferente.
Mas não posso deixar de criticar a decisão apresentando as mesmas razões acima
elencadas: sendo o CEMFA quem pratica o acto, melhor consegue explicitar quais
as razões que o levaram à pratica do mesmo e quais os argumentos que melhor
defendem o acto. A legitimidade deveria então pertencer ao verdadeiro autor do
acto.
Era importante uma reforma nesta matéria,
alterando a configuração do preceito legal no sentido de atribuir legitimidade
passiva ao verdadeiro autor do acto impugnado. Importa recordar que o regime da
legitimidade passiva na LPTA antes da Reforma do Contencioso dispunha neste
mesmo sentido: era atribuída legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto.
E considerações especiais à parte, era uma solução mais prática e vantajosa no
sentido de defesa da legalidade do acto impugnado.
Argumentavam as teses contra esta
solução dizendo que existiam frequentes dificuldades na identificação correcta
do autor do acto impugnado4. No entanto,como afirma e bem Alexandra
Leitão5 a regra vertida no artº10 nº2 nem sempre se afigura simples
de aplicar para o próprio autor podendo gorar o objectivo de facilitar a
identificação da entidade demandada. Veja-se o exemplo dado: quando está em
causa um acto ou omissão imputável a um membro do Governo integrado na
presidência do Conselho de Ministros ou uma declaração de ilegalidade por
omissão de elaboração de um decreto regulamentar cuja iniciativa cabe ao membro
do Governo mas cuja competência de aprovação cabe por costume constitucional ao
conselho de ministros. Nestes casos nem sempre é fácil determinar a
legitimidade passiva.
Como se pode ver os argumentos elencados na
exposição de motivos não são tao decisivos quanto se pensava, colocando este
novo regime os mesmos problemas de fundo.
Importa agora considerar que,
felizmente, o CPTA elenca alguns artigos que denotam um certo grau de abertura
na atribuição de legitimidade passiva ao verdadeiro autor do acto. São exemplo
disso mesmo o artº10 nº4 do CPTA, o artº78 nº3 do CPTA e os artigos 159 nº1 b) e 169 do CPTA. O mesmo
caminho deveria seguir o artº10 nº2 do CPTA. Não foi o caso. Resta portanto
aguardar por uma revisão da lei no sentido de atribuir a legitimidade passiva
na impugnação de actos administrativos ao verdadeito autor do acto.
1-Não é objecto da presente
publicação aprofundar o conceito de pessoa colectiva de direito público pelo
que não vamos aqui tomar considerações relativamente a este ponto.
2- MÁRIO ESTEVES DE
OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, anotado, Vol. I, pág. 169
3- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de
Justiça Administrativa, nº 47, pag.34
4- MÁRIO ESTEVES DE
OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, anotado, Vol. I, pág. 167
5- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de
Justiça Administrativa, nº 47, pag.33/34
Bibliografia consultada:
- AROSO ALMEIDA, MÁRIO, Manual de Processo Administrativo, 2013, Reimpressão Almedina
- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise, 2º Edição Actualizada, Almedina
- CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ, A Justiça Administrativa, 2012, 12ª
edição, Almedina
- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47
- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol. I
Margarida Domingues, aluna nº 22217
- ALEXANDRA LEITÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47
- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, anotado, Vol. I
Margarida Domingues, aluna nº 22217
Visto.
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